Depois de ser usado para disseminar fake news que ajudaram a eleger Bolsonaro, aplicativo ainda funciona como plataforma de radicalização.
Nas semanas finais da eleição presidencial, no ano passado, um boato perverso sobre Fernando Haddad se espalhou pelas redes sociais. O ex-prefeito de São Paulo e último adversário do direitista autoritário Jair Bolsonaro defendia a pedofilia gay.
Era uma informação tão obviamente falsa, mas tão disseminada, que veículos de imprensa legítimos e até mesmo a campanha de Haddad foram obrigados a negá-la vigorosamente.
É de conhecimento geral que o Facebook ajudou a campanha de Donald Trump, nos Estados Unidos, servindo de multiplicador de boatos absurdos sobre a saúde de Hillary Clinton e supostas compras de urânio na Rússia. Mas, no Brasil, a quarta maior democracia do mundo, o culpado foi outro (apesar de a empresa ser a mesma): o WhatsApp.
Estima-se que 120 milhões de pessoas – mais de metade da população brasileira – usem o WhatsApp para quase tudo: conversas em grupo e compartilhamento de notícias locais, nacionais e até mesmo globais.
O WhatsApp permite que os usuários entrem para grupos enormes, às vezes com centenas de integrantes, o que lhe dá uma força especial no Brasil. Num país em que a mídia tradicional é altamente concentrada, o WhatsApp tornou-se uma ferramenta de organização e uma maneira simples de driblar as estruturas tradicionais do noticiário.
Durante a eleição, o aplicativo virou uma arma poderosa para espalhar desinformação e fake news, especialmente para os apoiadores de Bolsonaro.
Agora, oito meses depois da posse do novo presidente, o WhatsApp ainda funciona como uma plataforma essencialmente invisível para a radicalização da direita brasileira, ao mesmo tempo em que a base de Bolsonaro se fragmenta em facções separadas e muitas vezes concorrentes. O Brasil sente os efeitos.
Como o WhatsApp ajudou Bolsonaro
Comecei a monitorar os grupos pró-Bolsonaro em março de 2018, no começo do período eleitoral. Descobri que as fake news se espalhavam da maneira típica, por meio de uma estrutura de grupos que lembra uma pirâmide, como detalhei num artigo para o The Guardian no ano passado.
Pequenos grupos de “influenciadores” estavam no topo do ecossistema pró-Bolsonaro. Eles eram os responsáveis por manipular notícias e criar mentiras que viralizassem.
Esses influenciadores então enviavam as informações falsas para grupos maiores, compostos pelos apoiadores mais ferrenhos do capitão reformado, que por sua vez repassavam para um exército de trolls. Unidos pelo apoio ao direitista, eles ajudavam a viralizar as fake news criadas pelos influenciadores.
A partir daí, as notícias falsas se disseminavam entre grupos ainda maiores de brasileiros comuns, que usavam o WhatsApp para driblar os veículos de imprensa tradicionais, recebendo notícias que reforçavam suas inclinações a votar em Bolsonaro. As discussões eram essencialmente câmaras de eco da causa direitista.
A importância do WhatsApp na campanha de Bolsonaro virou notícia internacional depois da eleição. Ficou claro que o serviço de mensagens era mais uma força disruptiva num mundo em que Facebook, YouTube, Twitter e Gab funcionam como incubadores de teorias da conspiração e desinformação – forças por trás da ascensão da extrema direita ao redor do mundo.
Depois da vitória de Bolsonaro, entretanto, diminuiu a atenção sobre o WhatsApp, e muita gente saiu dos grupos de que participava durante a eleição. O objetivo principal tinha sido cumprido; Bolsonaro era presidente.
Aqueles que permaneceram o fizeram pela mesma razão que os levou a entrar nos grupos: manter-se informado sobre o governo Bolsonaro, já que eles não confiam mais na mídia tradicional. Para essas pessoas, o WhatsApp é a fonte primordial de informações.
Oito meses depois da posse do novo presidente, o WhatsApp ainda funciona como uma plataforma essencialmente invisível para a radicalização da direita brasileira.
A união em torno de Bolsonaro durante a campanha, entretanto, desapareceu. Muitos dos grupos discordam das decisões do presidente e seu governo. As tentativas de Bolsonaro de apaziguar certas facções da coalizão composta por militares, pelos chamados “antiglobalistas”, conservadores sociais e pelas elites econômicas, além do seu governo desastrado e sem foco, resultaram numa guerra intestina. Ninguém se entende sobre as expectativas – e decepções – em relação ao presidente.
Os quatro grupos que eu monitorava originalmente se dividiram em coalizões frouxas, agora divididas em dez grupos. Cada um deles continua levando adiante sua missão de radicalização, basicamente longe do radar de reguladores, políticos, mídia e do próprio WhatsApp, que limitou o acesso ao conteúdo disseminado dentro dos grupos.
Hoje podemos identificar três grandes coalizões.
Duas delas apoiam Bolsonaro. Uma faz propaganda do governo e grita “fake news” para convencer os brasileiros de que o que está acontecendo no País na verdade não está acontecendo. A outra amplifica as ideias socialmente conservadoras e de intolerância do presidente.
Integrantes da terceira coalizão são uma espécie de insurgência – um grupo de brasileiros que acham que Bolsonaro é um traidor da causa. Hoje, eles são seus opositores mais ferozes e radicais.
Os propagandistas
A coalizão propagandista é semelhante aos grupos de WhatsApp formados durante a campanha. Seus integrantes são uma mescla de influenciadores, apoiadores ferrenhos e brasileiros comuns que levaram Bolsonaro ao Planalto.
Esses grupos de apoiadores ficaram ainda mais extremos. Antes havia certa tolerância para o debate. Agora, qualquer oposição – até mesmo meros questionamentos – ao presidente é sufocada. Mas, em vez de produzir, compartilhar e consumir fake news contra os adversários eleitorais, como no ano passado, a desinformação agora se concentra em propaganda governamental. O objetivo é tirar a legitimidade dos meios tradicionais, que vêm noticiando os problemas do governo.
Talvez isso fique mais evidente nos esforços para desacreditar a imprensa nacional e internacional no que diz respeito à escalada no desmatamento na Amazônia, alvo de condenação internacional.
Esses grupos se mobilizaram contra os jornalistas e veículos de imprensa que noticiam a destruição da floresta. Eles reagiram até mesmo contra autoridades do governo Bolsonaro – como Ricardo Galvão, ex-chefe do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, demitido em agosto, depois de o presidente discordar abertamente da afirmação de que o desmatamento da Amazônia estava aumentando.
Uma mensagem de zap, por exemplo, tenta desacreditar o jornalista André Trigueiro, da Globo News. “André Trigueiro diz que Bolsonaro vai matar a Amazônia… Não podemos esperar nada diferente de quem trabalha para a Globo Lixo! Imprensa comunista!”
Outra mensagem em grupo diz: “Ricardo Galvão mentiu sobre dados de desmatamento, outra fake news! Temos de nos unir em nome do País!”
Essas são mensagens típicas, e elas se espalham rapidamente por outros fóruns, como o Facebook e o Twitter, onde os propagandistas podem alvejar diretamente jornalistas e outros usuários com clamores de “fake news” e pedidos de provas sobre a veracidade das reportagens.
Os supremacistas sociais
A segunda coalizão – os supremacistas sociais – está primordialmente focada em se alinhar às visões conservadoras do presidente e de seu filho Eduardo e opiniões extremistas. Os membros desses grupos não estão interessados no dia a dia da política ou do governo. Enquanto Bolsonaro se empenhar na defesa de uma agenda socialmente conservadora, eles manterão seu apoio.
Essa segunda coalizão compartilha conteúdos pró-armas, racistas, anti-LGBTQ, antissemita e antinordestinos. Propaganda nazista, conteúdos pedófilos e símbolos do movimento nacionalista branco dos Estados Unidos, incluindo Pepe the Frog, são disseminados na forma de memes e vídeos. Fotos de políticos de esquerda são manipuladas para que eles pareçam comunistas ou anticristãos.
Mas os supremacistas sociais não estão isolados. Novos integrantes muitas vezes são conduzidos a outros canais de discussão mais radicais, incluindo Dogolachan e 55Chan. Outros fóruns guardam semelhança com o movimento americano dos incels, os celibatários involuntários. Conteúdos pedófilos, racistas e antissemitas são muito compartilhados e celebrados por lá.
O Brasil já sofre com o crescimento desses grupos: em março, dois rapazes ativos em fóruns extremistas abriram fogo contra os alunos de uma escola de Suzano, deixando 10 mortos e 17 feridos. Depois da tragédia, esses grupos responderam da mesma maneira que os conservadores e o lobby das armas dos Estados Unidos quando ocorrem tiroteios em escolas americanas.
Os insurgentes
Também há uma proliferação de grupos radicais do WhatsApp formados pelos desiludidos com Bolsonaro. Eles criticam o presidente não porque ficaram menos radicais, mas sim porque acham que o presidente não está sendo radical o bastante.
Esses grupos têm um sentimento nacionalista forte. Seus membros acham que Bolsonaro traiu o País, principalmente porque o ministro da Economia sugeriu vender a Petrobras para investidores internacionais. Eles também afirmam que o presidente não cumpriu as promessas de “limpar” o governo do corrupto establishment político. E, apesar de Bolsonaro ter indicado mais generais para o primeiro escalão do que qualquer outro governo desde a redemocratização, esses radicais afirmam que o ministério inteiro deveria estar nas mãos das Forças Armadas.
Para esses extremistas, a única salvação para o Brasil é uma insurgência armada para limpar completamente o Legislativo e o Judiciário.
Esses insurgentes, quase todos membros de grupos pró-Bolsonaro antes da eleição, expuseram de maneira irônica algumas das prática sujas da campanha. Muitos deles afirmaram ter recebido dinheiro – até R$ 1.000 por semana – para disseminar conteúdos pró-Bolsonaro.
Eles afirmam que grupos influentes de empresários teriam financiado essas atividades e sugerem que milícias virtuais – conhecidas como o Movimento dos Ativistas Virtuais – receberam remuneração para se infiltrar em grupos de WhatsApp com o objetivo de espalhar fake news.
Eles não implicaram diretamente a equipe da campanha de Bolsonaro, mas afirmam que pelo menos uma pessoa que tem cargo oficial em Brasília recebeu dinheiro em troca de semear desinformação.
E esses grupos também se fazem ouvir fora do WhatsApp. Eles estão por trás dos protestos que pedem que o presidente feche o Congresso e o Judiciário. São os mesmos que querem a volta da ditadura militar – uma indicação do nível de radicalismo do discurso num país em que o presidente há muito tempo celebra o regime autoritário que governou o Brasil por mais de duas décadas.
E agora?
Somente uma parcela ínfima dos brasileiros integra esses grupos, e ela não é representativa dos eleitores de Bolsonaro. Mas essas organização revelam a maneira como se dá a radicalização por meio de apps de mensagens como o WhatsApp.
Enquanto Google, Facebook e Twitter tentam conter discursos violentos e potencialmente perigosos, os consumidores desses conteúdos estão migrando para apps como WhatsApp e Telegram (outro serviço de mensagens popular no Brasil) em busca de radicalização e de lugares seguros para encontrar “inspiração”.
Isso significa um retrocesso para muitos dos traços e qualidades pelos quais o País é conhecido mundialmente, incluindo a celebração da diversidade étnica, altos índices de tolerância em relação à comunidade LGBTQ em comparação com outros países da América Latina, a prática de religiões de matriz africana e políticas antiarmas. Apesar de Bolsonaro representar ameaça ao meio ambiente, às comunidades marginalizadas e até mesmo à democracia, esses grupos não só o alimentam – eles agem de maneira perigosa e antidemocrática.
A solução exige uma resposta multifacetada. A polícia e o Judiciário têm de impor a lei – em vários países, incluindo no Brasil, o discurso violento de ódio é crime. A radicalização também começa cedo; os pais têm de prestar atenção ao que seus filhos fazem na internet.
As empresas de tecnologia também têm de tirar o acesso a plataforma de pessoas radicais. Essa medida às vezes funciona: o Facebook e o Twitter baniram os direitistas Milo Yiannopoulos e Alex Jones, limitando a influência de ambos. Mas eles ainda têm milhares de seguidores no Telegram.
Em comunicado ao HuffPost, um porta-voz do WhatsApp disse:
“Nas eleições do ano passado no Brasil, indicamos as mensagens que eram encaminhadas e fizemos um teste para limitar seu envio. Também bloqueamos centenas de milhares de contas por causa de spam e estamos melhorando nossas capacidades para detectar e bloquear contas automatizadas. Além disso, o WhatsApp trabalhou para gerar conscientização a respeito de desinformação, por meio de uma ampla campanha no rádio, na mídia imprensa e online. Ajudamos a trazer o Projeto Comprova ao WhatsApp, uma de várias organizações que realizam checagem. Vamos continuar expandindo esses esforços e trabalhando com outros membros da sociedade para lidar com os desafios da desinformação.”
Apesar de o WhatsApp ter feito mudanças por causa da eleição, o app ainda é uma plataforma única para a disseminação de mentiras perigosas – no Brasil e no resto do mundo. A radicalização acontece em alta velocidade – e o combate a ela exige uma resposta ainda mais rápida.
Fonte: Huffpost Brasil
Créditos: Huffpost Brasil