Claudio Rafael, 22, Duda, 40 e Rosanna, 50 não se conhecem, mas têm algo em comum: estão passando pela transição de gênero —assumiram a identidade com a qual se identificam e que é diferente do sexo biológico com o qual nasceram. Com o uso de hormônios, já notam mudanças significativas no corpo, como o surgimento de barba e seios.
O número de cirurgias de redesignação sexual, ou transgenitalização —conhecida popularmente como mudança de sexo—, no Brasil, aumentou em quase seis vezes, de 10 operações por ano para 57, nos dez anos em que o Sistema Único de Saúde (SUS) passou a cobrir o tratamento para transexuais. A quantidade de prescrições de hormônios deu um salto expressivo, de 171 para 1.900 entre agosto de 2008 e 2017, de acordo com dados obtidos por Universa, via Lei de Acesso à Informação.
Das vidas anteriores, o que Claudio, Duda e Rosanna mantiveram foi o casamento. Além de ter de lidar com medos, preconceitos e os efeitos dos remédios que tomam, eles contam para Universa como vêm tratando o assunto com seus parceiros.
A paixão aumentou
“Estou há sete anos com a minha noiva, mas comecei a transição de gênero há dois, quando procurei um endocrinologista para tomar hormônios masculinos.
Quando conheci a Jessica, ela se identificou como pansexual, quando a pessoa sente atração por indivíduos, independentemente de sua identidade de gênero ou sexo biológico. Desde o início, quando eu me identificava como uma mulher lésbica, ela disse que nunca conseguiu enxergar uma mulher dentro de mim. Foi ela quem começou a pesquisar sobre a disforia de gênero, condição em que a pessoa tem aversão ao próprio corpo, por estar em desacordo com sua identidade de gênero.
Na minha primeira consulta com o médico, há dois anos, foi minha mãe quem me acompanhou. Minha família toda me apoia, mesmo sem entender exatamente o que é a transexualidade. E, mesmo morando numa cidade pequena, também não sofri preconceito.
Chega a ser engraçado dizer isso, mas, depois que comecei a transição, a paixãozinha aumentou mais. A intimidade ficou melhor, porque, quando me identificava como lésbica, pensava que, se tomasse determinada atitude, iria parecer mais mulher que minha companheira, não iria parecer um homem, como eu queria. O único lado negativo de tudo isso foi a mudança de humor porque os hormônios mexem muito com a gente.”
Claudio Rafael, 22 anos, serviços gerais, de Abaeté (MG)
Eu me apaixono por pessoas, e foi o que aconteceu com o Claudio. Ele pode ser do jeito que quiser, contanto que haja sempre uma conversa franca. E, de fato, a relação melhorou porque ele está feliz, com o corpo que sempre quis. Fora que antes não queria fazer certas coisas por vergonha. Agora, está mais confiante.
Jessica Soares, 21, noiva de Claudio Rafael
Minha mulher é trans também
“Minha mulher se identificou como transexual há mais de 20 anos e dá várias palestras sobre o tema. Casei com ela após sua transição, há 14 anos. Há dez, eu comecei a me identificar como mulher trans também. Mas meu casamento quase acabou e escolhi manter a vida que levava, como homem. Isso me fez muito mal, tive depressão. Até que não aguentei mais.
Há seis meses, resolvi seguir em frente e estou tomando hormônios femininos. Desde então, meu corpo mudou bastante. Já estou com seios, o rosto mais delicado. Fiz o que precisava e estou realizada. Mas, em casa, ainda estou pisando em ovos, porque minha mulher é hetero e se casou com um homem. E creio que ela se sentiu desconfortável com isso. Já eu sou uma mulher lésbica. Não sinto que a traí porque isso não é traição, é identificação.
Ela cogitou de nos separarmos, mas a gente resolveu ficar junto e enfrentar a barra. Somos grandes amigas, em primeiro lugar. São 14 anos de união, e a gente não joga isso fora. Nunca levantamos a voz uma para a outra, sempre fizemos tudo junto, com trocas de gentileza.
Acho que minha mulher deve se sentir um pouco envergonhada. Por anos, ela teve um marido. Tanto que não nos seguimos mais nas redes sociais, e a vida social a duas quase não existe. Também não tocamos no assunto. Mas a gente segue como casal e tem uma relação sexual saudável. Estou vivendo um dia após o outro. Espero que meu casamento perdure. Estamos tentando nos adaptar a essa nova condição.
Todo mundo já sabe da minha transição: meu pai tem dificuldade em aceitar, minha madrasta apoia e meu irmão mais velho parou de falar comigo. Os amigos não viram nenhum problema e, no trabalho, até me ajudaram a trocar o crachá da empresa, para colocar meu nome social. Ainda tenho vontade de mudar os documentos, mas estou assustada. É tudo muito recente.”
Maria Eduarda de Oliveira, 40 anos, conferente e estoquista, de Ribeirão Preto (SP)
Hoje temos um relacionamento aberto
“Minha transição começou em 2017, mas foram várias as vezes em que comecei e parei de tomar os hormônios femininos. É muito difícil conseguir acompanhamento médico no interior de São Paulo e acabei começando minha terapia hormonal por conta própria.
Minha lembrança mais antiga de ter o sentimento de querer ser uma mulher é de quando eu era um menino de seis anos de idade. Aos 11, comecei a usar roupas da minha mãe e da minha irmã, quando ficava sozinha em casa. Mas eu não sentia atração por meninos. Queria somente ser uma mulher.
Tive algumas namoradas, mas só senti atração e tive relação sexual com a minha atual esposa, aos 20 anos. Ela tinha 15. Foram uma paixão e uma cumplicidade muito intensas e que duram até hoje.
Tivemos uma filha em 2006. Até aquele ano, minha mulher participava de algumas brincadeiras minhas, como me olhar usando as roupas dela. E, a partir do nascimento da nossa filha, comecei a pesquisar e entender o que significava tudo aquilo e expliquei para ela.
Foi um período muito difícil. Sofremos muito. Ela achava que deixaria de amá-la e acabaria com a nossa família. Então, prometi para mim mesma que abandonaria essas ideias. Não consegui.
Com o tempo e muitas conversas, ela começou a entender e se acalmou. Em 2017, criamos um perfil feminino com o nome com o qual eu me identifico hoje e que ela ajudou a escolher. Eu me senti cada vez mais mulher, não sei se por causa dos hormônios ou dos elogios e flertes que comecei a receber pela página. Isso me despertou o interesse por homens. No início, ela sentiu desconforto, mas hoje falamos de homens como duas amigas e continuamos nos amando como sempre.
A relação com a minha mulher envolve hoje mais carinho do que o ato em si. Hoje, temos um relacionamento aberto.
Expliquei toda a situação para a nossa filha, de 14, somente neste ano. Ela recebeu muito bem. Hoje, as crianças são muito bem informadas, o que facilitou o processo. Posso ficar vestida com roupas femininas em casa e me sentir bem. Na rua, saio como Rosanna a lugares onde as pessoas não me conhecem.
Ainda são poucas as pessoas que sabem da minha história, e elas me tratam normalmente como mulher. Tenho medo do preconceito, da violência e também de perder o emprego. Mas, quando saio vestida, procuro não pensar nisso. A maior barreira para me assumir são os meus pais e os meus sogros. Pensamos em nos mudar de onde vivemos quando as mudanças provocadas pelos hormônios ficarem visíveis.
Para quem já tem alguém e pretende passar pela transição, o primeiro passo é colocar a verdade na mesa, de um jeito suave. E, se houver amor verdadeiro, as coisas vão se arrumando.
Rosanna Galhardi, 50 anos, corretora de imóveis, de Sorocaba (SP)
Fonte: Universa
Créditos: Luiza Souto