Horas mais tarde, jantando num boteco próximo, recordamos outros eventos tumultuosos. Enfrentei muitos, sobretudo em Angola , durante os anos mais sufocantes da ditadura. No lançamento d’ “O ano que Zumbi tomou o Rio”, em 2002, o mítico Comandante Juju, pai de Ondjaki , também ele escritor, pediu a palavra: “Desculpe”, disse com delicadeza, “mas vou fazer uma provocação”. Poderia ter dito, com a mesma delicadeza: “Desculpe, mas vou dar-lhe um tiro”. O livro, disse, era “uma mentira muito bem escrita”. E acrescentou: “Você mente deliberadamente ou por ignorância?”
Logo a seguir, o poeta Ruy Duarte de Carvalho levantou-se aos gritos, avançando contra mim na intenção de me espancar, o que teria feito, com grande competência, se outros escritores não o interceptassem a meio do percurso. Meses mais tarde, compareci ao lançamento de um livro de Ruy. Ele abraçou-me. Desculpou-se: “Sabes como é, emociono-me.” Ruy, que morreu na Namíbia em 2010, deixou uma obra poderosa, originalíssima, na qual a poesia e a antropologia confluem num mesmo amor pelos povos nômades do extremo sul de Angola.
Pouco antes desse episódio, um jornal muito popular, o “Folha 8”, publicara uma pretensa investigação sobre o meu passado, tentando provar que em 1975, no início da guerra civil, eu teria sido violado por um batalhão de guerrilheiros. A notícia circulou durante anos e ainda hoje, vez por outra, alguém se aproxima de mim com um ar pesaroso: “Lamento aquilo que lhe aconteceu, lá atrás, mas você tem de ultrapassar isso. O que passou, passou.” Ultrapassar? Foi um batalhão, caramba!
O que Mia estava tentando dizer, no momento em que foi interrompido, é que a situação atual no Brasil nos lembra muito os meses da instalação da loucura, em Angola e Moçambique, pouco antes do início das respetivas guerras civis: a divisão da sociedade e das famílias; a impossibilidade do diálogo; a deslegitimação das instituições; a propagação de boatos e de notícias falsas; a normalização do absurdo.
Acredito, como Mia Couto, que a única forma de contrariar o alastramento da insensatez e da violência passa por restabelecer o diálogo. Por muito difícil que possa parecer, é imperioso parar e ouvir o outro. Nenhum político é tão mau, ou tão bom, que justifique que, por divergências quanto à sua maldade, ou bondade, um filho deixe de falar com o seu pai. Nada justifica uma guerra civil.
Em Angola, depois que a guerra terminou, testemunhei muitas vezes a aproximação entre pessoas que haviam combatido umas contra as outras. Assisti ao espanto de antigos inimigos no instante em que se descobriam próximos, partilhando os mesmos gostos e paixões, rindo das mesmas piadas. “Afinal éramos família e não sabíamos” — disse-me um general. Infelizmente, entre o início da loucura e o regresso da sensatez, milhares e milhares de pessoas desapareceram no processo.