Em sua fala durante a 1ª Convenção Nacional da Terra Plana (FlatCon), no domingo, em São Paulo, o maqueteiro Siddartha Chaibub citou o filme “Matrix” (1999) para afirmar que a população mundial é manipulada pelos “globolóides” — como ele se refere à comunidade cientifica internacional, composta por estudiosos que definem a Terra como um planeta esférico. “Eles nos tratam como gado, disciplinam as leis e as normas. Somos todos doutrinados. Ninguém nasce acreditando que a Terra é uma bola. A ignorância é uma bênção.” Chaibub é apresentado no flyer do evento como “Prof. Terra Plana”.
99,9% de certeza
Promovida pelo jornalista Jean Ricardo Gonçalves, 44 anos, a convenção atraiu ao Teatro Liberdade, na zona central de SP, 400 pagantes (R$ 80, primeiro lote; R$ 110, segundo). Casado, sem filhos (“só gatos”), Gonçalves mora em Jaú, a cerca de 300 km de São Paulo, e diz que começou a pesquisar o verdadeiro formato da Terra em 2015. Hoje, tem “99,9% de certeza” de que ela é plana.
O grosso de sua investigação foi feita em redes sociais “do Brasil e de fora”, onde ele tomou conhecimento de que as fotos da Terra feitas pela Nasa (agência espacial americana) não seriam reais, e sim produzidas com um compilado de imagens. Desde então, algumas perguntas o encafifaram: “Por que o homem não foi de novo à Lua, se a tecnologia hoje está tão mais avançada? Por que outros países não foram? Por que os EUA tem essa hegemonia?”
No discurso de boas vindas ao evento, ele solta uma saudação em tom de hip hurra!: “A FlatCon veio para ficar! Esse processo era necessário! Hoje conquistamos definitivamente nosso espaço merecido! Sejam bem-vindos!” Antes de chamar o primeiro palestrante, ele anuncia um número musical com o baiano Douglas Souza, que “canta até em alemão” e compôs uma canção chamada “A Terra é Plana”.
A letra:
Eu sei, já escalei montanhas/ eu vi o outro lado/ e o outro lado é só um lugar onde a gente não foi/hmmm/humm/hmmm/O mundo é plano e sem fronteiras/é campo aberto/abri meus olhos e finalmente enxerguei/que isso não vai mudar/até que o tempo acerte o seu lugar
(…)
Vão dizer que eu fugi da escola/mas que bobagem/foi justamente após concluir que eu despertei/ainda há muito a questionar/até que nas bordas do mundo meu canto eu possa ecoar/Eu sei que isso não vai parar/Mas até segunda ordem/Sou plano e vou continuar.
Palmas Uhuhuhu!!
Tudo truque
De uma maneira bastante infantil, quase divertida, os palestrantes parecem acreditar que há algo de subversivo em suas ideias terraplanistas. Como um grupo de garotos envolvidos em descobertas científicas no porão da casa de um deles, todos se mostram empenhados em superar os demais em suas elucubrações científicas, filosóficas, políticas e religiosas.
Talvez pelo caráter lúdico do encontro, uma das formas mais utilizadas para renegar o formato esférico da Terra é a pictórica. Além de questionar as fotos divulgadas pela Nasa, o advogado e youtuber Gilberto Assef, 40 anos, 37 mil seguidores no canal “Terra Plana Reloaded”, afirma que não existem registros confiáveis da existência real de foguetes e astronautas.
“Ninguém jamais viu um foguete deixando a Terra. Com mais ou menos 1 minuto de filmagem, eles cortam e colocam computação gráfica”, garante.
Cordinha na nuca
Em relação aos astronautas, Assef não tem dúvida de que “tudo era feito em estúdio”. “Eles colocavam uma cordinha na nuca dos caras e puxavam para o alto, para dar a impressão de que estavam flutuando”. “É sério, mano.”
Assef questiona ainda a existência do sistema solar: “Não se pode afirmar que o Sol é composto primordialmente de hidrogênio e hélio. Isso não passa de uma especulação sem fundamento. Não seria possível colher dados de um objeto celeste ao ar livre, a supostos 150 milhões de quilômetros de distância. Para conseguir isso, seria preciso um laser com 300 milhões de watts de potência, algo inconcebível.”
Pratictioner em PNL
O blog tentou repercutir a convenção de domingo com “globolóides”, mas não obteve sucesso. Dos três cientistas do IAG (Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosférica da Universidade de São Paulo) consultados, dois não quiseram se manifestar (um alegou que “terraplanistas não são assunto para astrônomos, mas para psicólogos e sociólogos”) e o terceiro disse que estava ocupado.
“As pessoas falam em ‘comunidade científica’, mas não existe consenso. Quem é o chefe dela? A igreja católica tem o Papa”, escarafuncha Anderson Neves, 49 anos, que se apresenta como “administrador de empresas com formação em contabilidade, e também patictioner em PNL (programação neuroliguística)”.
Neves usa esta última especialização para afirmar que “a comunicação por meio da fala, das palavras e símbolos pode programar a mente das pessoas”. Assim, a maior parte da humanidade estaria se recusando a reconhecer que a Terra é plana por acreditar que isso não passa de “teoria da conspiração”. “Ninguém quer se identificar com conspiradores. Então, muitas pessoas não estão interessadas em saber nem do que se trata. Mas tudo o que falam sobre teoria da conspiração é uma fraude. Temos vasta documentação para provar que a Terra é plana”, diz ele, sem apresentar nada muito concreto.
Pausa para cafezinho
No saguão do teatro, enquanto um grupo de curiosos rodeia o youtuber Gilberto Assef para assistir a suas evoluções geofísicas, o administrador de empresas Carlos Gênova, 56, joga para o alto (sem medo) a lei da gravidade: “É uma teoria que eles usam para justificar tudo. Agora, me diz: como é possível a gravidade segurar trilhões de litros de água na Terra, enquanto uma gaivota passa voando lá em cima, levinha?”
Em outro canto, o empresário digital Felipe Pinheiro, 33, diz que “está aberto à verdade”. “Não sou radical. Eu sou skatista, mas posso pegar onda, tá ligado?”
Ao citar sua desconfiança sobre a ida do homem à Lua, a química Silvia Sabrina, 33 anos, acaba expondo muito mais a precariedade do serviço prestado pelas operadoras de celular. “Como é que o presidente dos Estados Unidos conseguiu falar pelo telefone com um astronauta na Lua, nos anos 60, e eu muitas vezes não tenho sinal para falar para o interior de São Paulo com o meu celular?”
Só Jesus na causa
Agora, Jean Ricardo chama para se apresentar o especialista em sistema de localização (GPS) Flávio de Carvalho, 59 anos, também conhecido como “evangelista Flávio”. Ao blog, ele se define como cristão apostólico (“não acredito que Jesus é Deus, nem que vou morar no Céu depois de morrer”) e associa o formato (plano) da Terra a sua religião. Diz que o assunto está intimamente ligado à “polarização que assola o mundo em todos os campos”.
“A polarização representa o joio e o trigo; os bodes e as ovelhas; a treva e a luz; o bem e o mal. É profética. Jesus vai voltar como rei soberano, instituir um governo central e destituir todos os outros da Terra.”
Fonte: Uol
Créditos: Uol