Por incentivo da avó dona Heroína, Maria Aparecida Baú, na época com 12 anos, deixou a comunidade quilombola onde morava na região de Araçuaí, norte de Minas Gerais. A matriarca havia arrumado um emprego para a neta como empregada doméstica na casa de uma família branca de classe média alta em Montes Claros (MG). “Meninas novas eles colocam pra varrer, cuidar de criança…”, conta Aparecida, mais conhecida como Cyda, hoje com 44 anos. O salário? “Trabalhei um ano lá, sem ganhar. Ganhava a comida e uma roupinha de vez em quando”, diz. A situação se repetiu na casa de outras patroas, e até os 16 anos Cyda trabalhou como doméstica sem receber por isso, reproduzindo parte da triste história do bisavô: “seu” Antônio Baú foi um negro escravizado nas lavouras de cana da Bahia. O sobrenome da família foi um apelido dado pelo senhor da fazenda, uma vez que Antônio era hábil não só na lida do campo, mas também na confecção de malas e baús.
“O que vivi foi escravidão”, afirma Cyda de maneira taxativa. Além dela, sua avó e a mãe também trabalharam de graça “em casa de patroa” sem salário por muitos anos. “Era um costume que herdamos dos tempos da escravidão. Ainda é comum no país. Todos os dias nos quatro cantos do Brasil tem uma menina negra sendo mandada embora para trabalhar em casa de família. Meninas que largam a escola e os estudos e vão trabalhar como domésticas. Vamos ter uma geração de mulheres daqui a 30 anos que não lê, não escreve… Não terão tempo pra isso”, lamenta. Para ela, a própria existência da profissão está relacionada com nossa herança escravagista: “Empregada doméstica é uma coisa muito brasileira e tem total relação com o fato de o país ter acabado com a escravidão sem dar condição nenhuma pra quem estava sendo liberto. A mulher negra no Brasil foi pensada para limpar chão e passar pano. Foi pensada para… [se emociona] Para ser escrava, servir”.
Nas “casas de família”, longe da comunidade quilombola onde cresceu e sem nenhuma perspectiva, a jovem Cyda se sentia “suspensa” na realidade. Dormindo no “quartinho fetal”, apelido dado para o quarto de empregada da casa das patroas onde mal cabia um colchão inteiro e ela precisava dormir encurvada, decidiu que algo precisava mudar. “Me deu um estalo. Eu não estudava, não tinha nada, nenhuma condição decente de vida, não sabia ler… Queria poder falar coisas sobre mim, me expressar, entender tudo. Eu era órfã de tudo lá. Longe da família, dos valores, sem opinião própria”, diz.
Decidida de que algo precisava mudar, aos 16 a jovem fugiu da casa onde trabalhava havia dois anos em Belo Horizonte e pela primeira vez na vida colocou os pés em uma sala de aula. “Me matriculei numa escola. Lá, conversando com colegas, comecei a perceber que trabalhar sem ganhar não era comum”, afirma. Dos 16 aos 25 anos, Cyda continuou trabalhando como doméstica. Mas agora recebendo salário. “E eu fui atrás de salário alto. Dizia para as patroas ‘sou mineira, sou boa de cozinha. Me paga bem que você vai ver’”, relembra.
Os 13 anos como doméstica marcaram Cyda. Assédio dos patrões, patroas irritadas e a discriminação racial foram uma constante. “As crianças gostavam muito de mim porque eu jogava bola, brincava. Mas eu não me sentava com eles na mesa pra tomar café. Não tomava água no mesmo copo”, conta. A percepção do racismo sofrido demorou para se consolidar. “Com aquela idade não entendia porque estavam falando comigo daquele jeito, ou me maltratando… E depois de 25 anos cai a ficha: era por causa da minha cor.”
A empregada na TV
O novo regime de trabalho –agora com salário– permitiu que Cyda alugasse um barraco na capital mineira e comprasse uma televisão. “No quilombo não tinha TV. Só os donos das fazendas onde ia trabalhar com minha avó tinham, de vez em quando eu dava uma espiada e ficava fascinada! Então o que uma empregada doméstica faz em BH? Assiste novela”, diz. A atração pela TV fez com que Cyda desse outro salto na vida. “Vendi tudo o que tinha e fui para o Rio morar no quarto de empregada onde dormia minha tia Déia”, diz. “As duas em um quartinho ‘fetal’.”
No Rio, a jovem conseguiu entrar na prestigiosa escola de teatro Martins Pena. “Foi a primeira vitória que tive na vida enquanto mulher negra despertando”, conta. Se por um lado lá Cyda teve contato com a vivência teatral e suas técnicas, por outro se deu conta de que não havia espaço para negros. Ou melhor: havia, só que apenas na cozinha. “Não tinha personagem pra eu fazer. Eu fazia sempre as empregadas. Nas peças e nos estudos. Quando ia ver o meu papel era a da personagem que vem, põe o bolo na mesa e sai. Vem, limpa o que caiu e sujou, e sai. É muito forte isso”, afirma.
Após o curso na escola de teatro, a carreira de Cyda na TV não embalava, e se resumia a figurações em novelas da Globo. Foi aí que em 2014 ela foi incentivada por um amigo a se inscrever no programa A Casa dos Artistas 4, do SBT. O vencedor do programa seria escolhido para protagonizar a próxima novela da emissora, Esmeralda. Única mulher negra dentre os 14 participantes, Cyda se destacou, mas acabou eliminada na sétima semana. Ciente da popularidade da atriz, Silvio Santos decidiu convocá-la para a novela mesmo assim. O papel? A empregada doméstica Jacinta. “Dava raiva ser atriz no Brasil, país de maioria negra, e não ter um papel que não o de doméstica. O racismo estrutural do país preparou tudo isso. E não só pra mim, mas pra todo homem, mulher e criança negra. Seu lugar está definido quando você nasce. Se você não tiver força no coração pra atravessar esse muro, você vive preso a isso.”
A redenção veio pelas letras. Cyda se deparou com o livro Quarto de Despejo – Diário de uma favelada, de Carolina Maria de Jesus, ela também uma empregada doméstica. “Não li essa e outras autoras negras na escola. Não lia minha gente. A historia dela é a minha vida. Ela sai de Minas Gerais novinha, trabalha em casa de família, mora em favela…”, diz. Em seguida devorou Diário de Bitita, Pedaços da Fome e Casa de alvenaria, todos da mesma autora. “Aí fui ler Conceição Evaristo, e me deparei com a mesma história: ela foi doméstica, fugiu de patrão, sofreu abuso, não recebia salário. Quando terminei de ler estes livros eu sabia que ia fazer uma peça sobre isso”, conta. Dito e feito, Cyda escreveu, com o auxílio da dramaturga Gabriela Rabelo, Os Rastros das Marias, peça em parte biográfica mas que também dialoga com a batalha de todas as mulheres negras, de Marielle Franco e Carolina de Jesus à sua avó dona Heroína. Enfim, um papel para Cyda Baú, do quilombo para os palcos.
O EL PAÍS agradece ao Museu da Pessoa pela colaboração na reportagem.
Fonte: El País
Créditos: Gil Alessi