Enquanto avanços tecnológicos ampliam os limites da difusão de informações e de conteúdos em geral, cresce a ação do Estado para definir o que deve ser lido e visto
A queda do Muro de Berlim, no final dos anos 1980, e a consequente distensão ideológica fizeram renascer a democracia em várias partes no mundo. Como na América Latina. Enganou-se, porém, quem considerou sem volta o exercício das liberdades civis básicas — de pensamento e expressão.
A própria América Latina testemunha grupos políticos autoritários na ocupação de espaços importantes no poder em vários países, com o aceno para as sociedades de projetos astuciosos em que a liberdade é moeda de troca para se alcançar a “justiça social”.
A questão, no entanto, é mais ampla. A revolução digital em andamento, capaz de expandir a limites inimagináveis a capacidade de difusão de informações, provoca, em contrapartida, reações antiliberais até em países improváveis.
A Inglaterra é um caso mais evidente. Denunciado o grave crime de invasão de privacidade por trabloides sensacionalistas (“News of the World”), o sistema de autorregulação da imprensa inglesa, que já era falho, foi substituído por um outro mecanismo, também mal construído, pois a supervisão do que é divulgado continuou externa às redações. Pior, a mudança representou uma interferência do Estado na liberdade de imprensa, a quebra de uma tradição secular. E, por ironia, a denúncia de que repórteres trabalhavam como policiais e até contratando o serviço de agentes havia sido da própria imprensa britânica.
O vazamento de segredos da NSA por Edward Snowden, por meio de vários veículos de imprensa no mundo, O GLOBO inclusive, colocou o jornalismo britânico novamente na mira do Estado. O “Guardian”, um dos jornais que publicaram material retirado por Snowden dos computadores da agência americana de espionagem eletrônica, passou a ser bastante pressionado pelo governo, como relatou Alan Rusbridger, editor do jornal, ao Parlamento.
Fica claro que enquanto a tecnologia facilita, e cada vez mais, a difusão de conhecimentos e amplia o conteúdo de entretenimento, o poder público em geral procura restringir o direito de acesso do cidadão aos diversos meios, tornando o Estado um “pai grande” tutor da sociedade.
No Brasil, esta é uma tendência já conhecida. As lutas de MMA se tornaram o novo foco dos defensores desta tutela, depois do acidente sofrido por Anderson Silva na luta contra Chris Wedman. Mais uma vez usa-se um caso fortuito para justificar a “regulação da mídia”, pela qual programas de lutas e similares seriam banidos da TV, como se estes eventos já não fossem restritos, de acesso apenas a assinantes, exibidos na TV aberta em horários avançados. Além disso, a fratura sofrida pelo lutador brasileiro foi notícia de alto valor jornalístico, e portanto estampada na primeira página dos jornais no dia seguinte.
Não falta “regulação” na mídia eletrônica brasileira —há até em excesso. Mas, para que programas sejam banidos, será necessário rever a própria Constituição. Retorna-se à discussão sobre a imposição da classificação etária da programação de TV. Torná-la compulsória é reinstituir a censura, também necessária para impedir a publicação da foto de Anderson Silva com a perna fraturada.
No fundo, mais uma vez tenta-se recorrer ao Estado para definir o que a população pode assistir. Daí é um passo para ele definir o que pode ser lido, ouvido, e assim sucessivamente, até a construção definitiva de uma sociedade orwelliana.