Resgate

Ação resgata 163 trabalhadores chineses de condições análogas à escravidão em construções da BYD na Bahia

Foto: reprodução
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Uma força tarefa encontrou 163 chineses em condições análogas às de escravo trabalhando nas obras da indústria de automóveis BYD em Camaçari (BA). Tanto a Jinjiang, prestadora de serviços para a construção, quanto a empresa foram responsabilizadas pela situação pelos auditores fiscais do trabalho e notificadas na manhã desta segunda (23).

O Grupo Especial de Fiscalização Móvel reuniu 40 servidores públicos do Ministério do Trabalho e Emprego, Ministério Público do Trabalho, Ministério Público Federal, da Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal e Defensoria Pública da União e identificou condições degradantes e trabalho forçado. Uma coletiva à imprensa na tarde de hoje foi convocada para comunicar os resultados da operação.

Apesar de a terceirização ser legal no Brasil, a empresa contratante precisa garantir as condições dos trabalhadores quando o serviço for realizado em suas dependências ou em local por ela designado. Por isso, a fiscalização considerou que a BYD é corresponsável. O UOL solicitou um posicionamento para a empresa. Assim que for enviada, será aqui publicada.

Ela entrevistou os operários com a ajuda de intérpretes e investigou contratos e documentos após a Agência Pública trazer à tona denúncias de degradação e agressões no canteiro de obras.

Em janeiro deste ano, executivos da empresa chinesa visitaram o presidente Lula, no Palácio do Alvorada, confirmando o início das obras da fábrica onde, agora, a força-tarefa encontrou os trabalhadores escravizados. A BYD chegou a entregar a ele por comodato, por um ano, um SUV elétrico para uso da Presidência da República.

No último 2 de dezembro, o ministro-chefe da Casa Civil e ex-governador da Bahia Rui Costa visitou as obras. Destacou a criação de 10 mil vagas de emprego que serão abertas a partir de 2025. “Mais do que dobrar a oferta de emprego em relação ao que existia, no topo da produção da indústria que aqui estava, saltamos não só em quantidade, mas saltamos em qualidade da oferta de emprego”, apontou o ministro.

Contudo, qualidade de emprego era o que faltava aos operários chineses, de acordo com a fiscalização. Contratos analisados pela fiscalização previam jornada de dez horas por dia, seis dias por semana, com possibilidade de extensão, o que levada a uma jornada semanal de 60 a 70 horas – muito maior do que o limite legal no Brasil de 44 horas.

Considerado o trabalho pesado de pedreiros, carpinteiros, armadores, carregadores, soldadores, entre outros, a jornada exaustiva criava um ambiente propício a acidentes de trabalho. Houve pelo menos quatro, inclusive com amputação de membros e perda de movimentos nos dedos.

De acordo com a auditora fiscal do trabalho Liane Durão, coordenadora da operação, um dos operários, que perdeu movimentos, afirmou estar sonolento no momento do acidente. Ele estava trabalhando sob o sol dez horas por dia, durante 25 dias, sem folga, e dormindo mal porque estava em um alojamento precário.

Alojamentos abaixo da linha de dignidade

Um dos alojamentos registrava 31 trabalhadores para um único vaso sanitário, levando os operários a terem que acordar às 4h para enfrentar uma fila e começar o dia. Muitos dormiam sem colchões, outros com produtos tão finos que era como se dormissem sem nada. E como não havia armários, alimentos se misturavam a roupas e pertencentes, criando um ambiente em condições insalubres.

A fiscalização esteve em cinco alojamentos. Um deles estava bom e limpo, com colchões e equipamentos e servia à equipe administrativa. Os outros, reservados aos operários, encontravam-se em condições degradantes. “Com essa comparação, afastamos a justificativa muito usada de que a questão é cultural, pois há trabalhadores que gostam de dormir no chão”, diz Durão.

Notificado a apresentar endereços de todos os alojamentos, o empregador apresentou apenas dois, sendo um deles aquele com boa estrutura de cozinha e de camas. Os alojamentos em que foram encontradas condições degradantes foram omitidos, segundo a fiscalização.

Cozinhas estavam em condições precárias de higiene. O condicionamento dos mantimentos e dos alimentos preparados também desrespeitava normas sanitárias e de saúde pública. A comida era servida em coolers (caixas térmicas), sem condições mínimas de higiene.

Também não havia espaço para descanso dentro da jornada. Nas frentes de trabalho, havia oito banheiros químicos para 600 pessoas e estavam sempre imundos.

Trabalho forçado de operários chineses

Além das condições degradantes, a fiscalização também configurou trabalho forçado, que ocorre quando são impostas condições que impedem que as vítimas se desvinculem de seus patrões e do serviço.

A promessa do contrato de trabalho era de receberem o equivalente a R$ 10 a 15 mil por mês. No Brasil, contudo, eles receberiam de R$ 300 a R$ 1000 para se manterem, como ajuda de custo, mas que depois seria descontada do valor a ser pago. No total, 40% do valor do salário era depositado na China enquanto eles trabalhavam no Brasil. Uma parcela dos 60% restantes, receberiam após completar um ano do serviço e, outra, depois de três meses de concluído o serviço e eles retornarem ao país de origem.

Com isso, apesar das condições degradantes, muitos tinham medo de ir embora porque não queriam perder os 60% restantes. Além disso, teriam que pagar as passagens de volta por contra própria e perderiam um caução, um depósito que realizaram quando estavam na China para firmar contrato para a obra. Ou seja, trabalhariam de graça, na prática. Vale ressaltar que a cobrança de caução e a retenção salarial não estão de acordo com a lei trabalhista chinesa.

“Eles não têm liberdade da escolha de finalizar o contrato de trabalho”, afirma Liane Durão. “Isso é um limitador da vontade do trabalhador de encerrar o seu contrato de trabalho, direito que é garantido por lei”, diz. Tudo isso configura trabalho forçado.

O contrato de um ano também previa cláusula de renovação unilateral (pelo empregador) por mais seis meses, segundo a fiscalização.

Com isso, os trabalhadores do canteiro de obras da BYD ficavam em uma espécie de limbo. Não estavam sobre a proteção nem da legislação trabalhista brasileira, nem da de seu país de origem. Trabalhadores demonstraram o desejo de voltar à China urgentemente.

Apesar de ser uma obra no Brasil, o dinheiro pouco circulava por aqui. Como os trabalhadores receberiam o salário na China, isso limita os gastos e compras que teriam no Brasil, o que não favorece a comunidade em que a fábrica está se instalando. Todo o salário circulava no país asiático.

Eles podiam sair do alojamento apenas para comprar mantimentos, e com a autorização do líder de turma. Portanto, a liberdade era mínima, tal como a interação social e econômica.

Outro elemento que restringia a liberdade de se desvincular do patrão era retenção de documentos. A fiscalização encontrou 107 passaportes de trabalhadores em poder do empregador, apesar de, pelas leis de imigração, não existir necessidade disso ocorrer.

Íntegra dos salários devem ser pagos no Brasil

Os problemas encontrados pela fiscalização começavam na entrada dos trabalhadores no país. Foi declarado que os operários estavam no Brasil para prestar assistência técnica especializada, o que torna desnecessário a comprovação de vínculo empregatício, segundo a resolução 3 do Conselho Nacional de Imigração (CNIG).

Na prática, contudo, eram operários, sem serviço especializado, que seguiam ordens, batiam ponto, tinham chefes, cumpriam ordens. Portanto, deveriam estar com visto de trabalho. Tanto que os brasileiros contratados para as mesmas funções tinham registro convencional de vínculo.

A força-tarefa determinou ao empregador que pague todos os salários e direitos, inclusive os 60% que seriam entregues apenas quando os trabalhadores concluíssem o serviço e voltassem à China. Para os que desejarem retornar agora, o empregador terá que pagar as passagens, como prevê a lei brasileira. Os que desejarem ficar e trabalhar no Brasil podem dar entrada no pedido de visto – o país é signatário de convenção internacional que garante permanência a vítimas de trabalho escravo em seu território.

O Ministério Público do Trabalho vai entrar com uma ação para pagamento de todos os operários resgatados, mas também para a regularização dos demais. A fiscalização identificou escravidão em 163, mas, no total, mais de 500 estavam nas obras. E obrigar a empresa a cumprir a legislação trabalhista brasileira, o que, além de garantir direitos aos estrangeiros que aqui trabalham, também vai fazer com que o dinheiro dos salários circule no país.

Uma audiência na Justiça está marcada para o dia 26, a fim de que seja comprovado tanto os pagamentos quanto à remoção dos trabalhadores para outro lugar com condições.

“Neste momento, o foco do Ministério Público do Trabalho é garantir a saúde, as segurança e os direitos desses 163 trabalhadores”, afirmou Fábio Leal, subprocurador-geral do trabalho do MPT.

Trabalho escravo contemporâneo

A Lei Áurea aboliu a escravidão formal em maio de 1888, o que significou que o Estado brasileiro não mais reconhece que alguém seja dono de outra pessoa. Persistiram, contudo, situações que transformam pessoas em instrumentos descartáveis de trabalho, negando a elas sua liberdade e dignidade.

Desde a década de 1940, a legislação brasileira prevê a punição a esse crime. A essas formas dá-se o nome de trabalho escravo contemporâneo, escravidão contemporânea, condições análogas às de escravo.

De acordo com o artigo 149 do Código Penal, quatro elementos podem definir escravidão contemporânea por aqui: trabalho forçado (que envolve cerceamento do direito de ir e vir), servidão por dívida (um cativeiro atrelado a dívidas, muitas vezes fraudulentas), condições degradantes (trabalho que nega a dignidade humana, colocando em risco a saúde e a vida) ou jornada exaustiva (levar ao trabalhador ao completo esgotamento dado à intensidade da exploração, também colocando em risco sua saúde e vida).

Os mais de 63,5 mil trabalhadores resgatados estavam em fazendas de gado, soja, algodão, café, frutas, erva-mate, batatas, cebola, sisal, na derrubada de mata nativa, na produção de carvão para a siderurgia, na extração de caulim e de minérios, na construção civil, em oficinas de costura, em bordéis, entre outras atividades, como o trabalho doméstico.

No total, a pecuária bovina é a principal atividade econômica flagrada desde 1995. Números detalhados sobre as ações de combate ao trabalho escravo podem ser encontrados no Painel de Informações e Estatísticas da Inspeção do Trabalho no Brasil.

Repórter Brasil