O portal de Alice

Por Gonzaga Rodrigues

Antes de fixar morada em João Pessoa, retivera-a em dois relances. Primeiro com meus pais, numa promessa que vieram pagar na Penha. Resta desse primeiro contato apanhado na chegada, já anoitecendo, uma penumbra de verde e de sombras que anulava ainda mais as tochinhas de luz nevoenta sumidas ao longo da praça. O prédio imenso de janelões imperiais, ao lado, apenas se insinuava, a iluminação da rua só deixando que eu o visse inteiro e a toda altura na tarde seguinte. A pensão, descendo para a Estação, era um corredor de quartos num dos quais nos acomodamos. Dormi sem problema. A janta não foi pior que a do nosso sítio.

Era para ir ao santuário a pé, mas a erisipela do pai repontou e fomos de carro de aluguel. Sonhava em ver a Capital e só via mato, capoeira braba até descobrir o mar, visto de cima, as salsas ondas vindo lamber as casinhas de palha, só de palha ao sopé da barreira.

Da vez seguinte vim sozinho, pensando em matricular-me na Escola de Artífices, depois Escola Industrial. Subi a ladeira da chegada, entrei no burburinho do Ponto de Cem Ries, vi a praça dos poderes onde reinava Oswaldo Trigueiro e lá me ensinaram como chegar à tal escola. Tomei o bonde, senti-me transformado, mas ao chegar no destino a conversa não me agradou, voltei ao que era. Não consegui me decidir por nenhum curso. De manhã era um misto de ginásio e escola comercial; à tarde, o aprendizado do oficio, entre os quais o de gráfico, único pelo qual senti simpatia.

Não, não era isso o que eu queria.
E me esgueirei, descobrindo na frente da escola uma varanda sem fim, com pracinha e busto de presidente, destampando até longe um vale esplêndido ainda não explorado como gravura de folhinha do ano. Nunca uma paisagem de verdade ou de estampa me invadira ou me tomara com aquela intensidade. Existia mesmo ou era pura visão? Debrucei-me bem, apoiado na balaustrada, apurando a vista e o deslumbre no mundo encantado. Seria particular, cultivado só para enfeite?

Pois bem, só agora, mexendo com o monte de imagens sucumbidas no álbum de toda uma existência, aparece o pedaço que faltava naquela minha estréia da balaustrada das Trincheiras. Abro um livrinho de nome horrível, “Pulha”, reunindo impressões de infância ao modo de contos, de Antônio Figueiredo (empresário que não consta em nenhuma antologia das literárias ou das histórias infantis), e lá vem, quase setenta anos depois, o retalho de imagem que cola com a minha antiga surpresa, trazendo o vale da balaustrada agora pelos passos e os olhos da aventura infantil, da pulha, que era o desafio das brincadeiras da criançada do Jaguaribe. “A balaustrada (…) era para nós como um portal de Alice no País das Maravilhas que nos levava do urbano para o meio rural num passe de mágica: saíamos do paralelepípedo para a terra nua e lá percorríamos, em instantes, estâncias com vacarias, pocilgas, galinhas, perus, patos, guinés, gansos, pavões, cavalos, ovelhas, bodes, muita vegetação, água e os animais nativos (…). São páginas de um comerciante discreto, algumas delas dígnas de Dom Juan Ramon Jimenez, do “Platero e eu”. Páginas que me recuaram no tempo e nas boas graças do viver. Parabéns Dom Antônio, seu livrinho é um senhor livro.