Por Rubens Nóbrega
No inesquecível e emblemático 68, Jader e Fábio juntaram-se para dividir um quarto de pensão em Iputinga, Recife. Mas viriam a dividir bem mais no correr do tempo e da luta, na medida em que a amizade entre os dois se fortalecia pelas afinidades próprias da juventude ou semelhanças de ideário político.
Jader ingressou no PCBR (Partido Comunista Brasileiro Revolucionário), fundado naquele ano. Já seu amigo não se filiou a qualquer partido, tendência ou organização. Brincalhão e gozador por natureza, preferiu ficar ‘solto’, embora vez por outra se dissesse trotskista, talvez só pra ‘tirar onda’ com o pretenso stalinista ao lado.
Mas nem por isso Fábio deixou de militar no movimento estudantil de esquerda, mesmo sendo filho de quem era: João Agripino, governador da Paraíba e uma das principais lideranças civis de apoio ao regime militar instaurado com o golpe de 1964. A propósito, é razoável acreditar que JA não sabia das atividades ‘subversivas’ do seu rapaz. Da mesma forma, é bem provável que o filho cuidou de manter sua militância longe das vistas e conhecimento do velho.
Um episódio de meados de 68 validaria essa tese. Certo dia, ao se dirigir ao Recife para participar de reunião da Sudene, o governador mandou seu ajudante de ordens, um coronel da PM, deslocar-se até o pensionato para saber “se o menino precisava de alguma coisa”. A bordo do Opala preto que conduzira o chefe até a Capital pernambucana, o oficial foi bater em Iputinga. Chegou por volta de nove da manhã, quando a maioria dos hóspedes já havia saído para a faculdade.
Fábio e Jader não faziam parte daquela maioria. Ainda dormiam quando foram despertados por vigorosas pancadas na porta do quarto, desferidas pela dona da pensão, senhora ranzinza de meia idade que não suportava as brincadeiras de um e a pretensa malandragem ou boemia do outro, que na verdade passava madrugadas em demoradas reuniões do partido, planejando ações para derrubar a ditadura.
– Seu Jader, Seu Fábio, tem Polícia aí fora querendo falar com vocês – anunciou a dona da pensão. Ouvindo aquilo, mal a mulher se afastou da porta e sumiu no corredor, seus mais indesejados inquilinos saltaram da cama, encheram duas sacolas com livros e papeis aparentemente comprometedores e com essa bagagem correram até o quintal da casa, onde pularam o muro, acessaram a garagem do vizinho e de lá ganharam a rua. Correndo, em fuga.
Despejo e vingança
Voltariam ao pensionato dois dias depois, boquinha da noite, para recolher roupas e demais pertences. Mas a dona da pensão barrou-lhes a entrada e ainda disse que havia trocado a fechadura do quarto subitamente abandonado. Mais: somente liberaria a ‘mudança’ após receber por inteiro o pagamento do aluguel de um mês que ainda faltava uma semana para acabar. Estaria no contrato a condição.
Foi luta arranjar o dinheiro da mulher, mas conseguiram toda a soma naquela mesma noite, resgataram os troços e foram se alojar na residência universitária. No caminho, tiveram uma ideia: passar no Jornal do Commércio e para publicar um anúncio nos Classificados. Anunciaram vagas numa pensão de Iputinga a preço inacreditável. Cotaram o aluguel pelo menos três vezes mais barato do que a média cobrada para acomodações similares na área, que ficava bem pertinho da Universidade.
Cedinho do dia seguinte, Jader e Fábio foram até a rua do pensionato saborear a vingança. Ficaram na calçada de frente, por cerca de meia hora, contemplando a fila de mais de vinte candidatos. E chegando mais. Mais satisfeitos ainda ficaram ao ouvir a dona da pensão tentar desmentir aos berros o anúncio do JC. A todos que perguntavam pelo quarto, a pobre respondia, apoplética, que não anunciara coisa alguma e que seria estupidez sua alugar um cômodo daquela qualidade por valor tão baixo.
Presos em Ibiúna
Cinco meses depois de aprontarem no pensionato, nossos heróis embarcariam rumo a Ibiúna, São Paulo, para participar do famoso congresso que a União Nacional dos Estudantes (UNE) tentou realizar clandestinamente em um sítio daquele município. Na BR 101, Jader e Fábio subiram num ônibus que já vinha lotado de Natal, mas com um passageiro apanhado em
João Pessoa: o representante do Curso de Direito da UFPB.
Sisudo, trancado, sem dar palavra com seu ninguém e vestido feito almofadinha, a fera, que atendia pelo nome de Rubens, virou alvo de terrível desconfiança durante a viagem. Chegaram a pensar e a dizer que ele seria informante infiltrado no grupo pelo SNI. Jader ou Fábio, não se sabe até hoje qual dos dois, conhecia de longe o conterrâneo. Pelo menos o suficiente para saber que jamais poderiam confundi-lo com um dedo-duro.
De qualquer modo, Jader ou Fábio, não se sabe qual dos dois, só de sacanagem resolveu alimentar o mistério em torno daquele ‘estranho’ e ainda fez um pouco de terrorismo. “Ih, camarada, sei não… Mas é bom alguém alertar o pessoal que já está lá. Vai que…”, sugeriu um deles. Assim foi feito. Pior: tão logo chegaram ao sítio Muduru, formaram uma comissão para avisar pessoalmente à direção do encontro sobre o perigo que veio da Paraíba.
Coitado do rapaz. Mal desceu do ônibus, foi agarrado e levado pelo ‘Comitê de Segurança’ até uma mata por trás da casa grande da propriedade. Passaram mais de uma hora interrogando o ‘sujeito esquisito’, conforme descrição de um dos viajantes. Evidente que todas as explicações foram dadas e todo o mal-entendido esclarecido, mas Jader ou Fábio, não se sabe qual dos dois, não deixou de se divertir com a situação e os apuros de Rubens. Mas, pra encerrar, vejam como são as coisas: menos de 24 horas depois, os três viriam a dividir uma cela no presídio Tiradentes, na Capital paulista, onde foi encarcerada a maioria dos estudantes presos em Ibiúna.