Se eu te contasse que certo dia de 1955 um boêmio, poeta e seresteiro foi detido pela Radio Patrulha numa noite fria em Campina Grande (PB) por perturbação da ordem pública, solto na manhã seguinte, mas teve o violão apreendido na delegacia, você acreditaria? Tem mais. O boêmio, desesperado, correu atrás de um advogado para tentar ‘soltar’ o violão e encontrou outro poeta, que, também, boêmio, imediatamente se prontificou a pegar a causa. Na frente do juiz, o então recém formado advogado foi desafiado a fazer a petição de pedido de ‘soltura’ do violão em forma de poesia. Pois bem, o advogado/poeta não se fez de rogado, sentou-se na cadeira e, na máquina de escrever, fez a petição. O juiz leu e, também em forma de poesia, deferiu e liberou o violão para que o seresteiro pudesse continuar a fazer sua arte nas ruas da cidade.
Essa história é verídica e daria uma bela história para um livro ou um filme, e foi isso que a filha do advogado/poeta projetou há mais de 10 anos. Ela Gal Cunha Lima, o advogado, Ronaldo Cunha Lima, que, da porta de delegacia se tornou um dos maiores poetas brasileiros e um dos políticos mais aclamados na Paraíba e no Nordeste, chegando a ser governador do Estado, passando pelo Congresso Nacional como deputado federal e senador. Esse viés político iremos deixar para um segundo plano no decorrer desse texto.
Pois bem, todo esse enredo real está em fase de edição de um filme idealizado e produzido por várias mãos sob o comando de Gal Cunha Lima. O filme está agora na etapa de montagem e finalização, que deve durar cerca de três meses. Ainda não está definido o tempo de duração do filme, mas é certo que haverá um curta-metragem – de até 20 minutos – para que o filme participe de Festivais de Cinema mundo afora. O título do filme será “Habeas Pinho”, como ficou conhecida a poesia.
A estreia do filme ainda não tem uma data definida. Mas o certo é que haverá lançamentos em Campina Grande e João Pessoa e Gal pretende fazer “algo mais representativo, marcante”, para elevar ainda mais a obra do pai.
Gal disse que tem muito material gravado e que ainda não sabe qual será o tempo de duração para o filme ser exibido fora dos ares dos festivais. O certo é que, segundo ela, existe muita dificuldade no Brasil de exibir produções nacionais nos grandes circuitos de cinemas, mas ela pretende levar o trabalho para ser exibido nas escolas públicas. “Quero divulgar essa história, que é poesia pura, nas escolas, para que ele circule e não fique apenas só com o pessoal do meio cinematográfico”, disse.
Todos da produção são paraibanos e maioria de Campina Grande
A equipe do Habeas Pinho é quase 100% formada por paraibanos. Há apenas uma exceção, com a participação do diretor musical, que não nasceu na Paraíba, mas é um grande amigo de todos. Gal explicou que buscou os atores na própria cidade e encontrou Lucas Veloso (que interpreta Ronaldo Cunha Lima) e Mayana Neiva, além de Juzé, Tavinho Teixeira, Edvan Lima e Chico Oliveira, entre outros. Todos aceitaram o contive imediatamente.
Gal revelou que durante as gravações do filme as emoções ficaram à flor da pele. Cada cena um choro, uma lembrança, uma saudade. Foi prazeroso, mas não foi fácil conter as muitas emoções, muitas lágrimas, disse. Os próprios atores se envolveram tanto no trabalho, que Lucas Veloso, conforme depoimentos de quem participou das gravações, parecia até ter sido incorporado por Ronaldo Cunha Lima. O próprio ator confessou essa transição espiritual, afirmando que foi o poeta que estava lá nas gravações.
Em meio a tanta emoção, surgiram algumas ideias pós-filme que a filha de Ronaldo ainda pretende assimilar lá na frente. Juzé, que interpreta o seresteiro Paulo, quer produzir uma peça de teatro; Já Mayana Neiva sugeriu e quer protagonizar um musical; Lucas disse que quer participar de qualquer coisa que forem fazer futuramente.
O filme, segundo Gal, também resgata alguns pontos tradicionais de Campina Grande, a exemplo da Feira Central, a Rádio Borborema, a arquitetura antiga, além das grandes personalidades como Orlando Tejo, Raimundo Lira, o juiz que deu luz a essa história, Artur Moura, entre outros.
De acordo com Gal, é bom esclarecer que o filme, apesar de contar um fato real, é uma ficção, onde foram criados alguns personagens como Dafne Cabral, interpretada por Mayana. No começo da história, o juiz atendeu o advogado/poeta, que se apresentou para pedir a soltura do violão. Então, o juiz teria dito que, um seresteiro, uma seresta, um violão e um magistrado poeta, tudo isso, dava poesia, e disse que ‘soltaria’ o violão se a petição fosse em forma de poesia, o que realmente aconteceu.
Esse fato poético, aliás, foi um dos quesitos das provas do Enem de 2021, naquele ano, comemorado e contestado pela família Cunha Lima. Cássio, filho/herdeiro político de Ronaldo, questionou a ausência do crédito da obra do pai, assim como errinhos de interpretação da formulação da pergunta, que afirmara, erradamente, segundo ele, que se tratava de um cordel. De qualquer forma, o episódio e a obra se tornaram ainda mais conhecidos.
HABEAS PINHO
Exmo. Sr. Dr. Juiz de Direito da 2ª Vara desta Comarca
O instrumento do crime que se arrola
neste processo de contravenção
não é faca, revólver nem pistola,
é simplesmente, doutor, um violão.
Um violão, doutor, que na verdade
Não matou nem feriu um cidadão.
Feriu, sim, a sensibilidade
de quem o ouviu vibrar na solidão.
O violão é sempre uma ternura,
instrumento de amor e de saudade.
O crime a ele nunca se mistura.
Inexiste entre eles afinidade.
O violão é próprio dos cantores,
dos menestréis de alma enternecida
que cantam as mágoas que povoam a vida
e sufocam suas próprias dores.
O violão é música e é canção,
é sentimento vida e alegria,
é pureza é néctar que extasia,
é adorno espiritual do coração.
Seu viver como o nosso é transitório,
mas seu destino, não, se perpetua.
Ele nasceu para cantar na rua
e não para ser arquivo de cartório.
Mande soltá-lo pelo amor da noite
que se sente vazia em suas horas,
p’ra que volte a sentir o terno açoite
de suas cordas leves e sonoras.
Libere o violão, Dr. Juiz,
Em nome da Justiça e do Direito.
É crime, porventura, o infeliz,
cantar as mágoas que lhe enchem o peito?
Será crime, e afinal, será pecado,
será delito de tão vis horrores,
perambular na rua um desgraçado
derramando na rua as suas dores?
É o apelo que aqui lhe dirigimos,
na certeza do seu acolhimento.
Juntada desta aos autos nós pedimos
e pedimos também DEFERIMENTO.
Ronaldo Cunha Lima, advogado.
O juiz Arthur Moura deu sua sentença no mesmo tom:
Para que eu não carregue
remorso no coração,
determino que se entregue
ao seu dono o violão.