O futuro já era
Por Arnaldo Jabor
“Eu era jovem, feliz, perto do selvagem coração da vida”, escreveu Joyce ao chegar a Paris com 22 anos. Pois eu estava em Londres em 1967, quando saiu o Sargent Pepper dos Beatles e senti a mesma coisa. Havia em King’s Road uma espécie de comício dissolvido nos olhares, uma palavra de ordem flutuando no vento, “blowing in the wind”, como cantava o Bob Dylan. O mundo careta tremia, ameaçado pelo perigo do comunismo e pela alegre descrença que os hippies traziam.
A reação começou no início dos anos 80, quando morreu John Lennon, assassinado por um psicopata anunciador do que viria.
Depois, em 90, com o fim da Guerra Fria, nos pareceu que os Estados Unidos iam derramar pelo mundo seu melhor lado: a democracia liberal, a autocrítica modernizadora, o poder multipolarizado, a tolerância; parecia que a liberdade era inevitável, quase uma necessidade de mercado.
Mas não era esse o desejo dos caretas republicanos. Essa máfia de psicopatas queria se vingar do desprezo que sofreram nos anos 60, se vingar do vexame de Nixon e Watergate, se vingar dos Beatles, dos Rolling Stones, de Marcuse, de Dylan, da arte, dos negros, das mulheres, da liberdade sexual que sempre odiaram. Imaginem Bush, Karl Rove ou Rumsfeld diante de um Picasso, ouvindo “free jazz”. Começou a reação da caretice estúpida contra a modernização do mundo, tanto no Ocidente, quanto no fundamentalismo islâmico. Osama Bin Laden e Bush se uniram, sob a aparência de inimigos, numa aliança fundamentalista contra a paz e a democracia. Deixaram a “herança maldita”: o mercado global insensato, roído por homens-bomba e medo, a destruição do Iraque, o Afeganistão, o Ocidente como cão infiel do Oriente. E hoje assistimos a uma política mundial que é um balé impotente, com a razão humilhada e ofendida, para desespero dos que acreditavam num futuro iluminado. Não teremos nem o “fim da história” do Hegel, nem do Fukuyama, aquele “hegelzinho” do Departamento de Estado.
Cada vez mais, a vontade dos homens está submetida às suas produções – criamos as soluções que nos aprisionam; as coisas mandam nos desejos. Num primeiro momento, isso nos dá o pavor do descontrole racional sobre o mundo, ou melhor, da “ilusão de controle” que tínhamos: “Ah… que horror… o humano está se extinguindo, a grande narrativa, o sentido geral…”.
Mas, pergunta-se: que “humano” é esse que só no séc. 20 gerou duas guerras mundiais, Hitler, Mussolini, Hiroshima e Nagasaki, Vietnã, China, Pol Pot, África faminta. Que “humano” é esse que os racionalistas teimosos cismam em idealizar?
Está se formando uma nova vida social, sem finalidade, sem esperança ideológica, mas que poderá ser muito interessante em sua estranheza.
A tecnociência, o espantoso avanço da comunicação, da cultura da web, dos diálogos em rede no mundo todo, os twitters e blogs estão roendo os princípios totalizantes e totalitários. O futuro já era (apud Valéry). Tudo se passará aqui e agora, sempre. Há um enorme presente. O passado será chamado de “depreciação”.
A rapidez dessas mutações nos dá frio no estômago, mas a vida mesma dará um jeito de prevalecer e talvez esse atual fantasma que assombra os metafísicos esteja nos libertando de antigos “sentidos” tirânicos, trazendo uma nova forma de aventura existencial e social que possa vir justamente da desorganização da “ideia única”. Em nossa cabeça, as ideias sempre criaram as invenções, os avanços morais ou políticos. Mas as ideias agora surgem das coisas. Sistemas éticos ou racionais surgirão dos microchips, da tecnologia molecular e não o contrário.
O mundo está se desunificando sim, em forma de uma grande esponja, em vazios, em avessos, em buracos brancos que vão se alargando, à medida que a ideia do tecido da sociedade “como um todo” se esgarça. Não há mais “células de resistência”; apenas “buracos de desistência”. Há tribalizações de grupos, sem proselitismo; há uma recusa ao mundo, aceitando-o como algo irremediável, mas sem conformismo. Por dentro de seu luto, as tribos se desenham.
Os jovens de hoje querem alcançar uma forma de identidade alternativa e não almejam mais o “Poder” que está em mil pedaços. Antes, lutávamos contra uma realidade complexa, sonhando com utopias totalizantes. Era o “uno” contra o “múltiplo”. Hoje, é o contrário; a luta é para dissolver, não para unir; luta-se para defender o vazio, o ócio possível, o que não seja “mercável”. Agora, os novos combatentes não sonham com o absoluto; sonham com o relativo.
A desesperança está parindo novas formas larvais de sobrevivência. E isso pode ser o novo rosto da humanidade se formando. É claro que o ser humano necessita de explicação, de sínteses, de consolidação de ideias.
Sem dúvida, as religiões e o fanatismo estão florescendo e o irracionalismo (mesmo disfarçado de sensatez) resistirá bravamente.
Talvez sejamos robotizados, modificados geneticamente, talvez espantosas tragédias surjam nos corpos e nas sociedades, mas um tempo diferente de tudo que conhecemos já começou. Os intelectuais falam no tempo pós-humano. Mas a própria ideia de “pós” já é antiga. De qualquer forma, talvez o pós-humano seja interessantíssimo, até divertido. Será que vamos viver dentro de um videogame planetário? Pode ser – mas é mais interessante que o melancólico lamento pela razão e harmonia que não chegam nunca…
Estamos mais sozinhos; o misterioso rumo da história, com tragédias e comédias, está no comando, (como, aliás, sempre esteve), e as tentativas de prevê-las foram todas para o brejo… Estamos em pleno mar, porém mais “perto do selvagem coração da vida”.