GONZAGA RODRIGUES: PESADELO
Chuva fina, insistente, na noite de luzes morrentes, quase apagadas. Cruzo os braços no peito apertando o frio. Sentia a angústia de não ter acompanhado o enterro de minha mãe para não ver o seu rosto de cera endurecido pela morte. Sabia que os cravos em volta de pouco adiantariam. Mas a mãe morrera havia mais de trinta anos, por que essa angústia agora?
De qualquer forma culpava-me por saber que deixara o enterro sair sem o ter acompanhado. Botei-me às pressas, furando a solidão da rua, a fim de alcançar os restos do féretro. E vi-me, não no Boa Sentença da capital, mas no Campo Santo de Campina Grande, final enladeirado da Presidente Joâo Pessoa com placas de Wilson Sons & Cia, Noujaim Habib e S.B.Cabral da Chevrolet ou antiga Genetal Motores Truck. Tudo dando para o cemitério.
Do outro lado da rua, alguns passos antes de entrar na principal ala de túmulos, um louco dormia pesadamente sobre uns bancos de feira de um terraço aberto. Como pude intuir que se tratava de um louco? Eu nunca o vira, ele apenas dormia com os fortes peitos descobertos, de uma anatomia que lembrava a perfeição daquelas figuras paroxísmicas de Miguel Ângelo em “O Juizo Final”. Estarei tresvariando? A insânia volta ao começo e quero pegar um taxi às pressas para de novo alcançar o enterro no caminho ou em tempo de assistir ao encerramento. Um fidalgo, de preto, creio que Amir Gaudêncio, me faz um cumprimento compenetrado e longo.
Faz e passa. Sem dúvida é o Campo Santo e, no caixão, em vez da passageira inicial, jaz Asfora, o governador Burity, recém-eleito, me cumprimentando rapidamente, sem largueza, como se não passássemos de conhecidos. Otávio Augusto havia me falado no menino de seis anos que amanheceu sem o dia, numa aldeia da China.
O tráfico de órgãos que a ambição capitalista introduzira no defunto regime de Mao extraiu as córneas do menino e ele esperando demoradamente o amanhecer, pergunta à mãe por que o dia não dá as caras.
Tarde da noite, quando fui dormir, a televisão de super-nitidez tinha focado novo quebra-quebra, desta vez por conta do atraso de três ou quatro horas do comboio ferroviário, o turbilhão de passageiros se confundindo, na minha leseira, com a desordem dos séculos retratada em “ O juízo final”, quando Miguel Ângelo tenta encerrar a obra do outro, o primeiro e grande Criador.
A Câmara da República Federativa do Brasil enche-se de mascarados de fora e gera-se o tumulto com os de dentro. Viro-me na rede. E quando volto a conciliar o sono logo me sobressalta o republicano histórico Aristides Lobo descendo resoluto da estátua a ele erguida nos alvores do regime e agora emparelhada com a do poeta Caixa Dágua. Realmente, os tempos mudaram.