footHélio Schwartsman

O governo brasileiro e os médicos estão em pé de guerra. E, como ocorre em todo conflito, cada lado coleciona um bom número de razões e passos em falso. Os médicos estão mais do que corretos ao afirmar que não são os vilões da saúde pública nem os principais responsáveis pelo estado calamitoso em que ela se encontra no país. Esse é mais um dos fiascos que deve ser atribuído à administração, ou melhor, às sucessivas administrações não apenas no plano federal como também dos Estados e municípios. Uma das desvantagens de um sistema descentralizado como o SUS e que não sabemos bem de quem cobrar as soluções.

Nossos valorosos doutores, porém, deveriam ter mais cuidado ao afirmar que o país já conta com um número adequado de profissionais médicos e que o problema é sua má distribuição pelo país. A esse respeito, lembram que contamos hoje com 1,8 médicos por mil habitantes e não se cansam de citar uma suposta cifra da OMS, segundo a qual a existência de um profissional por mil cidadãos já seria “adequado”. Só que a OMS não é doida e jamais lançou uma recomendação global de número ideal de médicos por habitantes. O que ela faz em alguns trabalhos é contar a proporção de países que têm menos de um por mil (que era de 47% no último cômputo geral), o que pode ser a origem do rumor.

Obviamente, determinar a quantidade necessária de médicos exige uma conta complexa, que considere o grau de desenvolvimento do país, seu perfil demográfico (em especial a pirâmide etária) e epidemiológico, extensão territorial, grau de urbanização e nível de regulação (que procedimentos outros profissionais estão autorizados a realizar), entre outros fatores.

Não sei fazer esse cálculo, mas, se olharmos para a vizinhança das nações tão ou mais desenvolvidas que o Brasil, vamos verificar que nosso 1,8 por mil não é tanto assim. Os EUA, por exemplo, contam com 2,4 por mil; a Argentina, 3,1; Bélgica, 4; Rússia, 4,4 (antes que me perguntem de onde tirei esses números, informo que eles vêm do insuspeito site do CRM paulista).

Como já escrevi em outras colunas, nos anos 90, os médicos norte-americanos vieram com esse mesmo discurso de que já havia profissionais em demasia e projetavam um excesso da ordem de 145 mil doutores para o ano 2000. Conseguiram com isso fechar vagas nas escolas e residências. Só que as contas estavam erradas. Hoje, os norte-americanos preveem um déficit de até 200 mil médicos em 2020. Passaram a importar profissionais.

Acho legítima, portanto, a conclusão de que é pelo menos duvidosa a assertiva de que o Brasil já tem o número suficiente de médicos. E o que dizer de sua distribuição pelo país? Não há dúvida de que ela é desequilibrada. Enquanto o Rio de Janeiro conta com 3,39 profissionais por mil habitantes, o Maranhão tem mero 0,62. E essas assimetrias não estão limitadas a macrorregiões geográficas. Mesmo numa cidade como São Paulo, há disputa acirradíssima para vagas em hospitais públicos mais ou menos centrais enquanto sobram vagas em áreas mais periféricas. Os salários são teoricamente muito semelhantes (a carga de trabalho e benefícios intangíveis como o aprimoramento técnico, não).

A pergunta é se poderia ser de outra forma. Num país livre, o médico, como qualquer cidadão, se fixa onde quiser. Lugares melhores terão maior concentração de profissionais, e os piores, menor. Em princípio, o mercado poderia resolver isso. Bastaria oferecer um salário que convencesse o sujeito a mudar-se para a Amazônia. Em algum momento ele irá, nem que seja quando o vencimento chegar a R$ 50 mil mensais. (Alternativamente, poderíamos produzir médicos em proporções tais que eles se dispusessem a trabalhar nas zonas mais remotas, mas isso demanda tempo e tem o efeito colateral de achatar os salários).

O problema é que as secretarias de saúde dos rincões já alardeiam pagar valores um pouco acima do mercado e nem assim conseguem atrair profissionais. Alegam não poder aumentar mais essa oferta. (Vale registrar que há alguns casos próximos da fraude em que os prefeitos atraem o médico com um bonito salário que, entretanto, aparece apenas nos primeiros meses.

Depois a quantia vai sendo reduzida. É claro que dá para processar esse tipo de gestor público, mas entrar na fila dos precatórios não é exatamente um sonho de consumo dos profissionais liberais).

Penso que aqui os dois lados têm razão. Eu pelo menos não iria para o lugar onde Judas perdeu as botas e para trabalhar em condições inóspitas por menos do que uma pequena fortuna (além de faltar tudo nos hospitais e postos de saúde, ali não há escola decente para os filhos, para citar uma única complicação para a vida prática). É também evidente que Estados e prefeituras encontram obstáculos financeiros e legais para aumentar o salário até o ponto que traga o médico. O que fazer então?

Uma opção, absurda, mas com a qual o governo flertou, é forçar o médico a ir para esses lugares. Era esse o espírito da ideia de aumentar os cursos de medicina de seis para oito anos com dois de estágio obrigatório no SUS. O problema é que ela é autoritária, incompatível com o Estado de Direito e essencialmente burra. Reconheça-se o mérito das autoridades de recuarem dessa bobagem

Até faria sentido aumentar o tempo de formação do jovem médico. Já defendi aqui que a residência, que é onde o sujeito efetivamente aprende, deveria ser obrigatória. A questão é que isso só se justifica no contexto do ensino, não para resolver o problema de mão de obra do governo. E, para que a residência seja um lugar de aprendizagem, é necessário que haja a supervisão de profissionais mais experientes. Ora, se não há médicos na Amazônia, quem seria o tutor do jovem egresso?

E há uma legião de outras dificuldades. Como se estabeleceria quem iria para onde? Sorteio, desempenho acadêmico? Tudo isso provavelmente ruiria na Justiça. Como forçar alguém a ir morar numa floresta tropical infestada de febre amarela e malária sem sentença condenatória transitada em julgado?

Até admito que o governo poderia colocar como contrapartida para uma vaga em universidade pública ou bolsa do ProUni o compromisso de, após a formatura, dedicar dois anos de trabalho para o SUS. Mas mesmo aí surgiriam problemas. Como justificar que esse mecanismo exista apenas para médicos e não para outras carreiras? Afinal, também faltam advogados e engenheiros em várias áreas do país. Até o pessoal de humanas poderia ser útil atuando como professores em regiões remotas.

É claro que instituir regras de servidão voluntária nas universidades públicas seria um passo para destruí-las ou, pelo menos, enfraquecê-las. Os melhores alunos, que em larga medida explicam sua qualidade superior à média, dariam preferência a instituições privadas, mas isentas da corveia.

No mais, não gosto muito da ideia de um país que exija trabalho não muito voluntário de seus cidadãos. É claro que isso é questão de gosto e Suíça e Israel não deixam de ser democracias porque cobram serviço militar de todos, mas prefiro nações que maximizem as liberdades.

A outra solução aventada e também abandonada pelo governo me parecia melhor. Era a famigerada importação dos médicos cubanos. Para eles, qualquer salário oferecido pelo governo brasileiro é uma fortuna, mesmo que as autoridades cubanas confisquem a parte do leão.

Os médicos brasileiros, entretanto, reagiram com corporativa ferocidade contra a ideia. Disseram, não sem razão, que a medida não resolve os problemas da saúde pública nos rincões. É claro que não resolve. Sem hospitais equipados e insumos, ninguém, cubano, brasileiro ou membro do seleto clube dos vencedores de prêmios Nobel será capaz de exercer a boa medicina. A questão é que, entre a boa medicina e a completa desassistência, muita coisa pode ser feita. É perfeitamente legítimo que os médicos brasileiros não queiram ir para os rincões, mas há algo de desleal em tentar impedir outros de irem.

A carta da qualificação profissional não me convence. Em inúmeras situações aceitamos certificações feitas por outros países. Não exigimos de cada piloto de avião que pousa no país que “valide” seu brevê. De forma análoga, deixamos estrangeiros alugarem carros aqui sem passar pela autoescola. Também admitimos que drogas testadas em outros países sejam vendidas em nossas farmácias sem refazer cada etapa dos ensaios clínicos.

No mundo cada vez mais globalizado em que vivemos, barreiras erguidas contra a atuação de profissionais de fora ou a entrada de produtos estrangeiros têm mais chance de estar relacionadas à defesa de interesses de classe do que à efetiva proteção dos cidadãos. Não é uma lei sem exceções, mas é uma aposta bastante razoável.

No mais, a revolução cubana só produziu duas coisas úteis, que são a educação de qualidade e a saúde pública. Se há algo que os médicos cubanos sabem fazer é ensinar a população a evitar doenças com estratégias simples como lavar as mãos, não fazer as necessidades perto da água potável, proteger bebês de mosquitos, receitar antibióticos e vermífugos a quem precisa etc. Não é algo que se confunda com a tal da boa medicina, mas são ações extremamente importantes que ainda não conseguimos levar a muitas cidades brasileiras.

Nesse contexto, mesmo que os profissionais cubanos não sejam médicos plenos, poderiam trazer benefícios à população. Aqui, meio médico é preferível a médico nenhum, como asseguram a lógica e os primados da filosofia consequencialista.

É verdade que talvez nem precisássemos dos cubanos para isso. Resultados parecidos provavelmente seriam obtidos com enfermeiros autorizados a receitar drogas e realizar determinados procedimentos. Mas esse é outro assunto de que os conselhos nem podem ouvir falar.

A lição que tiro dessas lamentáveis guerras médicas é que não devemos jamais subestimar a incompetência e a inconsistência das autoridades, em especial quando acuadas pela opinião pública, nem a força das corporações. Nesse embate, quem mais perde é o suspeito de sempre: as camadas mais desassistidas da população.