A marcha das vadias e os exageros

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Carlos Lungarzo

Como muitas outras pessoas, não gostei de alguns fatos acontecidos durante essa última versão da Marcha das Vadias, no Rio de Janeiro. Creio que o ato de destruir ícones de uma crença, religiosa ou não, mesmo que sejam fetiches, mostra certo mau gosto, evidencia tendência agressiva contra os que, por identidade cultural ou quaisquer outros tabus, os veneram, e constituem um alvo fácil para os inimigos dos direitos sexuais, de gênero e de reprodução. Outrossim, tiram a beleza de um ato naturalista, em que pessoas seminuas desfilaram três vezes em quase todo o mundo (2011, 2012 e agora), reivindicando os valores emocionais e biológicos da espécie humana, e mostrando sua indiferença por uma falsa origem transcendente dos mesmos.

Em síntese: discordo com esse ato isolado dentro do movimento Slutwalk, que agrupou em todo o mundo milhares de pessoas. Com efeito, o tamanho não é um argumento válido para a provocação, embora seus inimigos (os mobilizadores de grandes hordas de superstições de todas as crenças) achem o oposto.

Digo isso porque alguns dos detratores da Marcha das Vadias falam do desrespeito aos milhões que apoiam o papa. Essas pessoas talvez desconheçam quantos milhões apoiam o aborto, mesmo em teocracias disfarçadas como a Itália (o último plebiscito a favor do aborto na Itália foi ganho por mais de 70%).

Veio à minha cabeça escrever esta nota, quando li o blog de um conhecido jornalista do mais sensacionalista e inescrupuloso canal de TV de toda a mídia brasileira. Ele se esbalda em insultos contra as mulheres da marcha, às quais acusa não apenas de intolerância, mas de serem fascistas (sic!?), e termina com uma mensagem mal dissimulada, onde disse que esse movimento já deveria ter desaparecido. Ou seja, sob uma imagem de respeito aos ofendidos e de indignação com as ofensoras, o jornalista manda um recado aos muitos que têm vontade de entrar na marcha com canivetes e “punhos ingleses”, como já fizeram neste país diversas bandas de verdadeiros fascistas (skinheads e outros).

Vários jornalistas querem evitar ser acusados de parcialidade, dizendo, no proêmio de seus artigos, que são ateus, mas respeitam a fé dos outros. Pessoalmente, não tenho certeza de que ser ateu, isoladamente, sem outro predicado, seja uma virtude tão essencial como para permitir propagar a censura. Embora seja condição necessária, não é suficiente, para uma verdadeira posição humanista:

Por acaso, não eram ateus Stalin, Mao-Tse Tung, nosso FHC e muitas outras figuras históricas cujo legado não foi, certamente, humanista?

Aliás, há um problema que vai além de considerações éticas difusas e entram no campo da lógica: Onde está o limite entre a livre manifestação de repúdio e o vandalismo? Nenhuma das notícias que eu li (posso ter lido de maneira pouco rigorosa) dizia que os ícones tivessem sido tirados dos templos, o que, certamente, seria furto. Alguns jornalistas dizem que os crucifixos já eram carregados pelas/pelos manifestantes.

Pergunto apenas: os milhares de resistentes antinazistas que em 1945 pisaram em cruzes suásticas e estandartes das SS estavam cometendo o mesmo crime? Pode argumentar-se que o nazismo propagou a violência e o atual papa prega a paz. Mas, então, será que uma fé ou uma ideologia deve ser julgada apenas por um de seus representantes numa circunstância específica? A história dessa crença e seu papel global não interessam?

Parece sensato indicar que o limite entre crítica, mesmo escrachada, e intolerância, está no limiar em que você passa a dificultar o exercício público da fé alheia. Isto teria acontecido se a marcha tivesse colocado algum empecilho ao movimento dos peregrinos. Os jornalistas, que não perderam nenhuma oportunidade de bajular o Vaticano, não dizem, em nenhum veículo que eu tenha lido, que as vadias tenham lançado pedras ou qualquer outra coisa contra os peregrinos que estavam do lado oposto na rua.

Não quero deixar a mínima dúvida. Repudio esse ato de deboche de destruir estátuas ou crucifixos, e me envergonho de que pessoas tão vulgares (que, não obstante, eram minoria na marcha) ofereçam uma imagem tão grosseira e fraca de um pensamento de esquerda, como é a luta pela liberdade sexual.

Meu repúdio é porque esse ato cria uma animosidade desnecessária, constrange as pessoas supersticiosas que atribuem propriedades sagradas a esses objetos (e têm direito a fazê-lo, pois cada um de nós tem direito a sua patologia íntima), e dá uma imagem de fraqueza. Por que, se acreditamos, como eu e muitos outros, que aqueles objetos são simples fetiches para exacerbar o totemismo das massas supersticiosas, os destruímos como se eles tivessem algum valor real?

Mas, esse repúdio não significa ignorar (muito menos coincidir com) as verdadeiras intenções de muitos ateus que criticaram isso. Seu objetivo é mostrar que os defensores da liberdade reprodutiva e sexual são um bando de malucos, e, portanto, mesmo os grandes ateus da direita, acham mais profícuo defender o papa e os evangélicos (que também se opõem ao aborto). Afinal, são essas massas as que podem dar votos.

Finalmente, lanço uma pergunta:

Esses jornalistas criticariam também as caricaturas dinamarquesas contra Maomé, as “brincadeiras” (brilhantes, por sinal) de Salman Rushdie, ou a peça teatral “O Vigário”,  de Hochhuth?

Qualquer uma delas teve maior difusão que a quebra de algumas estátuas no Rio de Janeiro por pessoas exaltadas, e qualquer uma delas ofende mais profundamente a religião. Sem dúvida, Pio XII se importou mais por terem provado que ele era nazista do que se importaria se tivessem destruído alguns ícones católicos na Via Ápia.