O que dizem as ruas?

Chico Alencar

20 réis. O aumento nas passagens dos bondes levou 4 mil pessoas até a Quinta da Boa Vista, no Rio de Janeiro, para entregar no Palácio Imperial um “Manifesto ao Imperador”. Reunida depois no Campo de São Cristóvão, a multidão foi atacada pela cavalaria. Sucederam-se dias de confrontos nas ruas da Corte. A “Revolta do Vintém” só terminou com a ação do Exército, deixando um saldo de 10 mortos. Mais do que o descontentamento com o preço do transporte, era o grito de um povo que já não suportava escravidão, insalubridade e um dia a dia difícil, tendo como pano de fundo o declínio da economia cafeeira tradicional e a descrença na representação política: “Quem rouba pouco é ladrão/ quem rouba muito é barão”. Longe das praças agitadas, os palácios da monarquia, em 1880, não percebiam sua distância da vida real. D. Pedro II lamentou os acontecimentos: “Há quase quarenta anos presido esse governo, sem que houvesse necessidadede atirar no povo. Mas que remédio? A lei tem que ser respeitada” – disse, conformado. O inconformismo crescente iria mudar leis e acabar com o próprio regime, menos de uma década depois.

20 centavos. Essa majoração das passagens de ônibus, somando-se às de outros transportes coletivos – que no Rio chegou a 128% nas barcas, para uma inflação acumulada de 41,7% (IPCA) desde 2007 – são o reclamo principal dos que percorrem avenidas de várias cidades brasileiras. O clamor juvenil não é apenas contra a precariedade da locomoção: é um brado contra os abusivos R$ 12 bilhões de recursos públicos com estádios de futebol, contra a crescente privatização da educação e da saúde, contra a inflação na cesta básica, por moradia digna, contra os embusteiros para quem “templo é dinheiro” e política meio de enriquecer. Em síntese, contra a mercantilização da vida. Agressões isoladas ao patrimônio não maculam a força da voz que cutuca nosso comodismo e, movida a utopia, expressa solidariedade. As autoridades justificam a violência da PM em nome da “lei e da ordem”, como nos tempos monárquicos. Afrontam a Constituição, que assegura a todos o direito de “reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização”.

Analistas estranham a movimentação sem tutela, as reivindicações múltiplas e sua pauta, e ainda buscam entender esse aparente ‘raio em céu azul’, que não é revolução mas impressionante irrupção. Os da política tradicional, que só pensam em seus mandatos, ficam torcendo para que saiam de cena esses que eles jamais representarão. Querem a massa  comportada das arenas dos torneios da Fifa, sem bandeiras, bumbos e cantos ruidosos. Enquanto essa paz de cemitério não volta, são obrigados a tomar medidas legislativas ou iniciativas executivas que, até há pouco, sequer cogitavam. A contragosto, saem da inércia. Entidades de trabalhadores e estudantes, burocratizadas, sempre alheias ao que não tem aval do oficialismo, buscam se movimentar também, para não perder de vez o trem da História.

As ruas do Brasil policlassista e a comunicação através da internet não são controláveis. Há um resgate do coletivo nesses tempos de hiperindividualismo. “Podemos ser qualquer pessoa que luta por uma cidade mais justa e por seus direitos”, diz a jovem ativista de São Paulo. Impossível prever dimensão e duração das manifestações, com sua diversidade de sujeitos e frágil organicidade. Mas esse despertar mexe com a empáfia do Poder e questiona a frase de Lima Barreto, no início do século passado: “O Brasil não tem povo, tem público”. Nem sempre, e, oxalá, nunca mais.