Enfim, o povo cerca os donos do poder!

Gilvan Freire

Há, no Brasil, duas democracias distintas: a democracia do povo e a dos poderosos. A democracia do povo, que é festejada nas eleições, a cada dois anos, é a forma mais enganosa de o povo achar que pode tudo, só porque bota e tira seus representantes nas várias instâncias do poder. É um ato de curta duração, uma sensação de poder efêmero pra nada, porque logo depois o povo se recolhe à sua insignificância. Daí pra frente é com eles, os mandatários, impropriamente chamados de representantes do povo, somente porque foram escolhidos pelo voto popular. São eles, hoje, a quintessência do que há de pior na democracia brasileira. Por isso, não é sem razão que esse tipo de democracia representativa está falido, apodrecido e ameaçado nas ruas do país, pelo menos no seu formato dominante.

Até agora ninguém entendeu bem as motivações dos movimentos sociais que assumiram as ruas de São Paulo e se alastraram por outros lugares. Não há ainda nenhuma bandeira de luta notável, que possa identificar com clareza o que está dentro da cabeça dos jovens rebeldes instrumentalizando a luta e recebendo adesões em massa de milhões de protestantes. A questão do aumento das passagens dos ônibus urbanos parece apenas um apêndice da revolta, pois seu principal conteúdo, embora não revelado totalmente, é a questão de fundo de uma democracia em que o povo é chamado para representar-se mas não se sente representado. É um choque de proporções inimagináveis para testar a resistência de um modelo de democracia esgotado, cansado, não por causa do regime em si mas por causa dos agentes políticos, que apodreceram as estruturas do regime. Nesse modelo putrefato, é a democracia que tem de ser salva, não os homens públicos.

SALVAR A DEMOCRACIA e derrubar suas estruturas humanas viciadas e corruptas parece ser uma das motivações dos movimentos que estão ganhando as ruas pelo Brasil afora. Os jovens sabem que é isso que incomoda e provoca a ira, mas ainda não sabem como resolver a questão, porque não é fácil solucionar o problema antes das eleições. É esse impasse que impede que os revoltosos avancem sobre os agentes políticos e as instituições débeis que operam à margem, quando não contra a população.

O clima geral no país é de grande tensão e incerteza, mas os agentes políticos sabem que a ira coletiva cresce contra eles. Todos estão insones e inseguros, e um episódio acidental pode colocá-los na mira do furor coletivo. Já era tempo de haver esse encontro fora de época nas ruas, para que o povo demonstre que mais do que um voto vale muito mais, na democracia, a luta.

Estamos apenas no começo de um transbordamento dos humores coletivos contra uma democracia ineficiente que usa a representação política para negar paz, educação e saúde à coletividade, enquanto a classe dirigente saqueia os cofres públicos e explora o voto em proveito próprio. É bom esperar que o povo dê um basta nesses sacanas, e revise pelos movimentos sociais esse modelo agônico de democracia sem representatividade, que atenta contra a soberania popular e não empresta ouvidos ao clamor das ruas. Mas já é possível ter esperanças.