A Comissão da Verdade

Nonato Guedes

Inteiramente favorável à Comissão Nacional da Verdade instituída pela presidente Dilma Rousseff para apurar violações de direitos humanos, especialmente na ditadura militar, reconheço que ela tem seus limites, como ponderou em editorial o jornal “O Globo”. O limite maior esbarra na punição aos que agora estão sendo apontados ou descobertos como autores de atos inomináveis que foram cometidos na noite longa das trevas. A Lei de Anistia de 1979, aprovada pelo Congresso, teve a sua característica de reciprocidade confirmada pelo Supremo Tribunal da Verdade. A CNV tem que se ater a esse princípio, sob pena de estar mexendo com um vespeiro de conseqüências imprevisíveis.

Desse ponto de vista, não cabe encaminhar qualquer nome ao Ministério Público e à Justiça para ser processado por alegados crimes cometidos na repressão política, tampouco sugerir qualquer iniciativa nesse sentido. Seria, no mínimo, ilegal, ainda que caiba recurso junto a Cortes até internacionais sob o pretexto de fatos novos que abririam brecha para uma reavaliação de dispositivos sancionados. Em todo caso, a derrubada de tais princípios pode criar um precedente negativo quanto à jurisprudência de outras leis e dispositivos que vigoram no país. A deputada paraibana Luíza Erundina, que representa o PSB de São Paulo, apresentou projeto para suspender a anistia concedida a agentes públicos. “O Globo” insiste em que é ilegal e pode colocar o país numa inexistente máquina do tempo, levando-o para um período de tensões já superado.

Seja como for, a exposição detalhada de fatos escabrosos ou tenebrosos no período militar está vindo à tona, para preservação da memória e da verdade, e para reconstituição da verdadeira máquina de suplício e de terror que foi instaurada no Brasil naqueles tempos de mar de sargaço. O próprio editorialista do órgão das empresas de Roberto Marinho admite que a Comissão da Verdade tem efetuado um esclarecimento necessário sobre o paradeiro de desaparecidos na guerra suja do enfrentamento entre militantes de esquerda, nem todos guerrilheiros, e o aparato repressivo que funcionou nos porões dos quartéis. De maneira mais ativa depois do AI-5, no final de 1968, quando a ditadura militar radicalizou-se. Mas, muito antes disso, nos primórdios da vigência do regime, a tortura já ganhava espaço, como constatou o levantamento da Comissão Nacional da Verdade.

É parte, ainda, da agenda da Comissão o inventário da atuação de agentes públicos em atos violentos – torturas, assassinatos, etc – contra presos políticos. “O Globo” observa que, nesse aspecto, o Brasil se diferenciou de países vizinhos, e precisa continuar assim. Aliás, o jornal fluminense ressalta que num continente em que nem sempre os processos evolutivos costumam se dar em linha reta, nosso país tem sido uma das positivas exceções. Depois de transitar no ciclo de ditaduras militares com a região, o Brasil fez parte do comboio da redemocratização, mas, ao contrário de vizinhos, tem conseguido consolidar instituições que são, inequivocamente, republicanas. Enfrentou, dentro do Estado de Direito, o impeachment de um presidente e experimentou, sem qualquer turbulência, a chegada ao poder pelo voto de um partido de esquerda, no Planalto há mais de uma década.

A Comissão fez o balanço de um ano de atividades e já identificou pelo menos 1.500 daqueles agentes, além de coletar centenas de depoimentos, realizar inúmeras audiências públicas. Do ponto de vista de “O Globo”, é um balanço alvissareiro dentro do propósito de dar resposta às vítimas do regime, a seus familiares, esclarecendo os fatos daqueles tempos para que nunca mais voltem a acontecer. Esta teria sido a inspiração primordial da Comissão, até como forma de afastar os rumores sobre tentativas de revanchismo que estariam embutidas. Pessoalmente, entendo que o revanchismo é subjacente a essas finalidades apregoadas. Não se pode conter as lágrimas de dor que ainda não secaram, muito menos ocultar agentes repressivos travestidos de agentes da ordem.

Admita-se que é melhor não mexer na Lei da Anistia, embora eu insista em que há brechas para tanto. O problema de fundo é que no Brasil essa Lei foi negociada arduamente entre representantes do governo e setores radicais, oriundos dos porões. Teria sido parte da ampla articulação para que o processo de redemocratização fosse completado sem traumas. Nem por isso a Comissão perde sua importância crucial, desvendando os que se escondiam atrás de capuzes para cometer atos de sadismo contra prisioneiros que tinham em mãos. E é uma Comissão pedagógica para as novas gerações, sem dúvidas.