Opinião

A ciência venceu, mas a ganância e a política deixaram bilhões sem vacinas - Por Jamil Chade

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A vida ou a morte não dependem apenas do avanço da ciência. Mas de quem você é e onde, por acidente, nasceu.

Nesta segunda-feira, o Comitê do Nobel acertou em dar o prêmio de medicina a Katalin Kariko e Drew Weissmann, por suas pesquisas que garantiram a eficiência das vacinas contra a covid-19. Doses que salvaram vidas.

Mas a evolução cientifica não conta toda a história da pandemia. Três décadas depois do ápice da crise da Aids, o planeta cometeu os mesmos erros e deixou, por anos, bilhões de pessoas sem acesso a tratamentos e vacinas contra a covid-19.

Em meados dos anos noventa, um tratamento contra o vírus HIV já existia, permitindo ampliar a sobrevivência daqueles que tinham sido infectados. Mas esse benefício da ciência praticamente só era uma realidade para aqueles que viviam em países ricos. O tratamento custava em média 10.000 dólares por ano e, assim, um paciente na África precisaria do equivalente a 20 anos de salários para pagar por apenas alguns meses do coquetel de remédios que deveria tomar para o resto de sua vida.

Na prática, o tratamento não existia para uma enorme porção da população mundial.

De acordo com a entidade Médicos Sem Fronteiras, até que os remédios fossem disponibilizado em sua versão genérica e sem patentes para essas populações mais pobres a um custo de 1 dólar por dia, 11 milhões de pessoas morreram apenas no continente africano.

Nem todos eles teriam sido salvos se os remédios chegassem antes. Mas certamente milhões de famílias poderiam ter evitado o pior e prolongado a vida —inclusive produtiva— de seus entes queridos.

Trinta anos depois, o mundo repetiu uma história similar e revelou que a humanidade sofre de uma amnésia aguda quando o tema é salvar vidas.

Em 2021, diante da pandemia da covid-19, vacinas começaram a chegar ao mercado e a ciência revelou todo seu esplendor em promover um resultado em tempo recorde. No Reino Unido, uma senhora de 90 anos, Margaret Keenan, entrou para a história como a primeira a receber a vacina num país ocidental. Para muitos, a esperança era de que aquela dose represente o começo do fim de um pesadelo.

Mas nem essa ciência é para todos nem esse recorde é universal. Como já foi dito antes, se na primeira vez a história ocorreu como uma tragédia, ela se repete como uma farsa.

Antes mesmo de iniciar suas vendas, mais de 50% da capacidade de produção de vacinas no mundo já está reservada ou comprada por um grupo pequeno de países que, juntos, representam apenas 13% da população mundial. Levantamentos da Universidade Duke, nos EUA, revelaram que Canadá, EUA e UE já garantiram doses que seriam suficientes para vacinar várias vezes toda sua população. Já dezenas de Governos simplesmente não contavam com nem sequer uma dose.

Em 2022, com estoques abarrotados, pesquisas de mercado revelaram que países ricos tiveram de jogar no lixo cerca de 1 bilhão de doses, desde o início da pandemia. Um crime.

Logo no início da crise, na esperança de garantir maior acesso e um melhor equilíbrio na distribuição, cem países em desenvolvimento apresentaram um projeto ambicioso: suspender patentes de produtos relacionados com a covid-19 e, assim, garantir sua produção genérica para permitir uma queda acentuada de preços e uma maior fabricação pelo mundo. Mas nem todos estavam de acordo e bloquearam a iniciativa, entre eles o governo de Jair Bolsonaro.

Uma vez mais, a crise sanitária de 2020 escancarou a falácia de que o avanço da ciência funciona para todos. Por décadas, empresas abandonaram pesquisas sobre doenças que afetavam os mais pobres e que, portanto, não renderiam dividendo aos investidores. Elas foram chamadas de “doenças negligenciadas”, um nome hipócrita para falar, no fundo, de povos negligenciados.

Outro argumento que se desfez na atual pandemia é de que empresas privadas precisam ser devidamente recompensadas por suas apostas na pesquisa de uma nova vacina, que poderia não funcionar. Elas têm razão. Mas, antes, precisariam revelar como, apenas no caso da covid-19, receberam o equivalente a 12 bilhões de dólares em recursos públicos de Governos para garantir suas inovações.

A equação é clara: o risco é coletivo. Se uma aposta numa vacina não funcionar, a empresa tem a segurança de ser resgatada por dinheiro público. Mas, em caso de vitória, a patente é sua recompensa e o lucro, obviamente, é privado.

Na tentativa de não cometer o erro dos anos 90, a Organização Mundial da Saúde (OMS) se apressou para criar um sistema que permitiria que uma parcela dessa inovação chegasse aos países mais pobres e que essas populações não sejam pisoteadas na corrida pela salvação.

Assim, a aliança mundial de vacinas —a Covax— foi estabelecida. Mas a iniciativa viveu uma falta crônica de recursos e de doses.

Hoje, a vacina já chegou a 72% da população do mundo. Mas, na África, apenas um terço está vacinado. No Haiti, a taxa não chega a 10%. Em 59 países do mundo, nem metade da população está vacinada.

A emergência internacional já foi encerrada e, agora, não há mais pressa.

Em eventos na ONU, na OMS, no G20 ou em outros fóruns internacionais, não são poucos os líderes que fazem discursos garantindo que a vacina precisa ser um bem público internacional.

Mas não aceitaram a quebra de patentes nem abrem seus bolsos para garantir que a inovação chegue aos países mais pobres. Promessas vazias e uma fraude à humanidade.

Uma vez mais, os ricos foram os primeiros a serem imunizados. Enquanto isso, o restante —frequentemente mais escuro, mais exausto, mais distante de seus sonhos e mais desprotegido— fizeram uma fila interminável de esperança na forma de uma dose da vacina.

Em nossa geração, existe a cura para muitas doenças que matam. Existem alimentos para abastecer dois planetas. E existem pessoas dispostas a ir ao socorro dessas populações. O que nem sempre existe é o compromisso politico para que isso se transforme em realidade.

O que existe hoje no mundo é um sistema que serve para estancar o sangue de uma ferida mais profunda, sem que a estrutura de poder seja modificada e sem que o monopólio seja desfeito.

Para as veias abertas do mundo, o que a pandemia mostrou que o que temos são curativos improvisados e insuficientes, prestes a definhar.

A ciência venceu. Mas a ganância e a política mostraram os limites do conceito de humanidade.

Opinião
Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Fonte: UOL
Créditos: Polêmica Paraíba