Um voto para o general

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Nonato Guedes

No livro “O Congresso Em Meio Século – Depoimento a Tarcísio Holanda”, Paulo Affonso Martins de Oliveira conta o episódio da prorrogação, por um ano, do mandato do general Castelo Branco, que ele testemunhou na condição de eminência parda da Mesa da Câmara, onde, por muitos anos, atuou como Assessor Especial. Castelo havia prometido passar o cargo a 31 de janeiro de 1966, mas acabou aceitando a prorrogação por um ano, conferida em votação dramática de emenda de iniciativa do senador João Agripino (Arena-PB) à proposta de autoria do próprio presidente, aprovada por apenas um voto, o que assegurou o quorum da sessão. Os trabalhos foram presididos pelo senador Auro de Moura Andrade e o processo de sufrágio foi nominal e a descoberto.

Como primeiro-secretário da Câmara, o deputado Henrique La Rocque, do Maranhão, fazia a chamada dos deputados, anotava a natureza de cada voto e proclamava o resultado. Como era míope, pediu a Paulo Affonso que o ajudasse na chamada, indicando o nome de cada votante. Ao término da chamada, verificou-se que faltava um voto para atingir o quorum exigido, que, na época, era de maioria absoluta. Moura Andrade suspendeu a sessão, aguardando a chegada de algum eleitor. Pelas normas do regimento, o presidente do Congresso deveria ter declarado que a emenda estava prejudicada, mandando arquivá-la. Naquelas circunstâncias, era impossível o cumprimento do regimento, o que traria conseqüências imprevisíveis. Observou-se da Mesa, onde Paulo Affonso se achava, que o senador Daniel Krieger conduzia o deputado Luiz Bronzeado, da Arena-PB, solicitando que Moura Andrade reabrisse a sessão. Bronzeado declarou ao microfone que, tendo de atender a uma ligação telefônica, foi à Mesa e comunicou pessoalmente ao secretário-geral (Paulo Affonso) que quando seu nome fosse anunciado votaria pela prorrogação.

O relato é de Paulo Affonso: “Moura Andrade voltou-se para mim e indagou se o fato era verdadeiro. Alguém, que não identifiquei, sussurrou ao meu ouvido: “Confirma, Paulo, sob pena de fecharem o Congresso Nacional”. A expectativa era grande à minha volta. Não tive alternativa. Disse ao senador Auro de Moura Andrade que o fato era verdadeiro, o que o levou a proclamar a aprovação da emenda constitucional e a encerrar a sessão. Creio que tive, no momento, uma restrição mental, como afirmou o marechal Lott ao justificar seu silêncio sobre o contragolpe que desferiu na madrugada do dia 11 de novembro de 1955. A Emenda Constitucional número nove foi promulgada a 22 de julho de 1964”. Essa decisão, conforme Paulo Affonso, tinha graves implicações políticas.

Em primeiro lugar, suprimia, como suprimiu, a eleição direta presidencial que se realizaria a três de outubro de 1965 e para a qual eram candidatos notoriamente lançados o governador Carlos Lacerda e o ex-presidente Juscelino Kubitscheck. O próprio Castelo incluiu na emenda dispositivo vedando expressamente a sua reeleição. Tal fato precipitou a sucessão presidencial, permitindo que se impusesse a candidatura do ministro da Guerra, general Arthur da Costa e Silva, que ultrapassou a liderança de Castelo Branco. Ao viajar para o exterior, Costa e Silva afirmou, o que foi interpretado como uma provocação a Castelo, que iria e voltaria ministro de Estado. No discurso de posse na presidência da República, em 15 de abril de 1964, depois de eleito indiretamente pelo Congresso Nacional, Castelo Branco assegurou que a intervenção militar fora praticada em nome da democracia, sendo compromisso inarredável das Forças Armadas o seu caráter transitório e corretivo. No discurso de posse, proferido perante o Congresso Nacional, afirmou, em certo trecho: “Meu procedimento será o de um chefe de Estado sem tergiversações no processo para a eleição de um brasileiro a quem entregarei o cargo a 31 de janeiro de 1966”.

Essas evocações conduzem a várias reflexões. Uma delas a de que o poder deixa qualquer um obcecado. Outra é que o ciclo militar, autodenominado revolucionário, dificilmente se esgotaria em um mandato-tampão de um general. A fila era enorme entre os que integravam o oficialato, cada um julgando-se mais preparado que outros. E afinal de contas os militares não haviam mobilizado a nação para o golpe com a condição de entregar o poder de mão beijada a líderes que ele queriam expurgar da cena, como fizeram, com Juscelino, Lacerda, João Goulart, Jânio Quadros e tantos que embarcaram no canto da sereia do golpismo disfarçado.