opinião

De submergível a rinha na jaula: nada é mais perigoso do que rico entediado - Por Matheus Pichonelli

Imagem: Reprodução de redes sociais

Em uma das cenas mais conhecidas do filme “A Bela da Tarde”, de Luis Buñuel, a dona do prostíbulo interpretada por Geneviève Page define as excentricidades do personagem milionário de Michel Piccoli com uma sentença encharcada de ironia: “Ele tem dois problemas: muito dinheiro e muito tempo”.

O filme é um marco sobre os caminhos tortuosos que pessoas ricas podem tomar quando estão entediadas. Ao menos as aventuras não atravessavam os quartos das melhores famílias.

Em 2023, quem multiplicou seus milhões padece de um problema similar, mas agravado: o que fazer quando se chega cedo demais ao topo do topo do mundo? Como manter ativo aquele frio na barriga dos grandes desafios quando até os vinhos, os restaurantes e as viagens aos lugares mais cobiçados soam apenas como um filme repetido e tedioso?

No time dos bilionários aborrecidos, cada um preenche o vazio como pode. Elon Musk, US$ 180 bilhões, decidiu comprar e transformar o Twitter em seu playground particular para fazer (maus) amigos e influenciar pessoas. Mas não se contentou.

Mark Zuckerberg, US$ 85 bilhões, já tinha o próprio parquinho. Nas horas vagas, enquanto administra sua rede e ajuda a azedar a maionese da sua, da minha e da nossa família nos almoços de domingo, ele pratica jiu-jítsu e mostra que nem só de curtidas e dinheiro vive um homem. Ele também quer medalhas.

No começo da semana, os donos do Twitter e do Facebook se desafiaram, nas redes sociais, para uma luta no “cage”, uma jaula onde acontecem combates de artes marciais mistas, o tal MMA.

A história daria uma música: Musk era só tédio por dentro e então o Mark para o duelo ele chamou. Zuckerberg perguntou a hora, o local e a razão. “Octógono, Vegas”, desafiou o sul-africano, para tristeza dos brasileiros que já se dirigiam à Ceilândia em frente ao lote 14.

A rinha de bilionários agora é mais esperada do que a luta de Popó com Whindersson Nunes, outro milionário que se aporrinhou com a fama e o sucesso e decidiu buscar novos desafios botando o corpo e a cara a tapa em outro ringue.

Musk e Zuckerberg parecem dispostos a levar à vida real a mudança de mindset que, na série “Friends”, acabou com o namoro de Monica (Courteney Cox) com Pete Becker (Jon Favreau), o milionário que, a certa altura da vida, deixou os negócios de lado para ser trucidado na carreira de lutador. Não tinha amor capaz de competir com o narcisismo de um afortunado entediado e autodestrutivo.

O próprio Musk sabe disso. Tanto que, em outro ringue, ele já mostrou o muque para os rivais Jeff Bezos e Richard Branson na disputa por um mercado promissor: o turismo espacial.

O trio de bilionários já percebeu que, num mundo conectado, superexplorado e já colonizado de cabo a rabo, quase não sobraram áreas inóspitas a serem exploradas por quem não se contenta em ser mais um na multidão de endinheirados.

Foi-se o tempo em que bastava, para eles, comprar a própria ilha, a própria equipe de automobilismo ou o próprio clube de futebol para se divertir. O negócio agora é criar uma linha prime que leve turistas realmente distintos para a Lua. Ou Marte.

No espaço, ao menos, não correrão risco de dividir o mesmo ar do elevador com os pé-rapados que ainda rastejam no terreno dos milhões.

Até lá, em vez de furarem a estratosfera, os bilionários precisarão descer algumas léguas no fundo do mar se quiserem realmente se distinguir de seus iguais.

Foi o que percebeu o empreendedor que encapsulava bilionários em uma lata de ervilha disfarçada de submarino e os levava a quase 4 mil metros de profundidade para visitar os destroços do Titanic. Não tinha como acabar bem.

Durante a semana, muito se falou do desejo mórbido de conhecer de perto as estruturas carcomidas de um símbolo da pujança industrial que não resistiu à força da natureza — no caso, a um iceberg. É o que acontece quando os homens resolvem brincar de Ícaro, figura mitológica que emulou o próprio Deus, subiu ao céu e contratou a própria ruína.

O dono do submersível dizia estar cansado de lidar com “representantes da indústria que usam argumentos de segurança para impedir a inovação”. Chamava a furada de “inovação” e, como tantos, não precisava se atentar aos padrões de certificação emitidos em terra firme. Deu no que deu.

As vítimas da implosão do submergível seriam, por essa leitura viciada em lições de moral, as versões contemporâneas de um Ícaro às avessas que desafia as leis humanas e divinas.

Mas não são os únicos a se arriscarem em um mundo que exige a superação de limites o tempo todo para atestar a própria existência.

Em seus livros sobre homens ricos ou filhos de homens ricos que largam a vida de conforto para se embrenhar em perigos diversos — de escaladas ao Everest a incursões solitárias no Alasca —, o escritor Jon Krakauer produz, em cada relato, uma profunda reflexão sobre a atração que regiões selvagens exercem sobre o imaginário de quem tem tempo e dinheiro sobrando para se aventurar. Elas envolvem uma certa mentalidade juvenil (ou a reivindicação de um resgate dela) em relação ao risco e até laços altamente tensos entre pais e filhos.

No caso dos que já escalaram as profundezas dos dez dígitos, não resta muita opção senão submergir ou se matar em gaiolas e provar na própria pele os conceitos de divertimento e enfado de que falava o filósofo Arthur Schopenhauer. Para ele, nos divertimos quando buscamos o que não temos, aí conseguimos, deixamos a obsessão de lado e passamos a desejar outra coisa, e outra, e outra, e assim sucessivamente até chegar a Marte. Ou ao fundo do oceano.

Ao menos os bilionários vitimados pelo tédio no Atlântico tiveram a fineza de colocar apenas eles mesmos em perigo. Que Netuno os tenha (e digo isso sem traço de deboche).

Em um tempo em que desistir ou assumir limites (ou o tédio) chega a ser ofensivo, vale a lembrança de um dito apócrifo e esquecido pelo canto dos vencedores: “Na subida do Everest existem centenas de corpos de pessoas altamente motivadas”.

Fonte: UOL
Créditos: Polêmica Paraíba