O Lula sindicalista

Nonato Guedes

É indiscutível que Lula foi o protagonista do novo sindicalismo instaurado no Brasil, em plena marcha do regime militar. Foi nas fábricas do ABC paulista que o retirante nordestino, alçado, mais tarde, à presidência da República por duas vezes, fez seu estágio probatório como líder de um sindicalismo de resultados, desatrelado da máquina estatal e dos seus pelegos. Ele foi iniciado na militância pelo irmão, Frei Chico, que de religioso não tinha nada além do apelido e demonstrou seu carisma nas lutas travadas em São Bernardo do Campo e Diadema. Quando passou a representar 100 mil trabalhadores, dentro do sindicato, foi tido como expressão orgânica, uma pessoa com imenso poder para articular as bases.

Após mais de dez anos sem greves operárias, os trabalhadores começaram a se mobilizar contra os problemas socioeconômicos decorrentes de distorções da política do regime militar, também envolvido numa repressão desvairada contra foco de resistência que eventualmente pipocasse, colocando em xeque o status quo. Ocorreram, então, as primeiras paralisações que estremeceram o sistema autoritário. Numa sexta-feira, 12 de maio de 1978, na fábrica da Scania, em São Bernardo do Campo, trabalhadores revoltados com mais um holerite sem reajuste cruzaram os braços e pararam as máquinas. A repercussão política foi enorme. Estava em vigor o Ato Institucional número cinco, que cassou direitos e liberdades, inclusive o de expressão dos trabalhadores. Os operários da Scania ficaram parados por dois dias, o bastante para operar um corte nas relações entre patrões e assalariados.

Mais ainda: o movimento encorajou uma série de greves, paralisando 280 mil trabalhadores de diversas categorias nos dois meses seguintes. O esforço foi premiado. Quatro meses depois daquele 12 de maio, um milhão de pessoas já tinham recebido reajustes acima dos estipulados pelo governo. Lula ainda não havia participado de uma greve, e seus sentimentos diante da vitória conquistada oscilavam entre o medo e a alegria. Com a importância de que passou a desfrutar, foi saudado pela imprensa, por associações empresariais e até pelo governo. O empresário Luís Eulálio Bueno Vidigal, que chegou a negociar com Lula, disse que ele era um líder sindical sério, que não estava interessado em tirar proveito político pessoal dos movimentos que comandou. Nem Vidigal nem Lula imaginavam que o sindicalista acabasse mergulhando de ponta cabeça na política e criando um Partido que chegou ao Planalto.

O novo sindicalismo era sustentado por uma classe trabalhadora jovem, livre das influências de antigos oligarcas. Lula definia: “São pessoas que não viveram o populismo de Getúlio Vargas e que começam a acreditar nelas mesmas, sem tutela de qualquer espécie”. Algumas das propostas eram emblemáticas, como a de acabar com a contribuição sindical que vinculava o sindicato ao Estado ou a de romper o cordão umbilical atado ao Ministério do Trabalho. Passados 20 anos, como resumem historiadores, o novo sindicalismo se tornou, através da CUT, o projeto mais duradouro da história do gênero no país, incorporando a parcela mais significativa dos assalariados. Foi a partir da vitória das greves que Lula começou a falar na necessidade de os trabalhadores criarem um partido próprio. Ele foi preso e enquadrado na Lei de Segurança Nacional.

Proclamava, com uma dose de messianismo: “Não tenho medo de ser preso, de ser torturado ou mesmo de morrer. Meu único medo é o de falhar, por engano ou por falta de bom senso, com aqueles que confiam na gente”. Inevitável que em torno dele fosse criada uma aura de esperança ou de confiança na mudança. Na época em que o retirante nordestino comandava as batalhas no ABC paulista, o bloco comunista do Leste europeu começou a desmoronar. E coube aos trabalhadores ou operários erguerem barricadas contra os regimes totalitários. O movimento se iniciou na Polônia, projetando a figura de Lech Walesa acampado nos estaleiros de Gdansk. No Brasil, a luta era contra militares de direita. Na Polônia, o confronto se dava com um regime totalitário de esquerda.

Lula e Walesa foram artífices de uma nova Era. Deixaram o exemplo de que quando o trabalhador parte para se reconhecer a si próprio, livra-se mais rapidamente da opressão, tenha ela a feição que tiver. Desse ponto de vista, contribuíram significativamente para guinadas histórias que ainda hoje ressoam em todo o mundo.