O óbito da reforma

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Nonato Guedes

Equivaleu a uma nota de falecimento o texto divulgado pelo presidente da Câmara Federal, Henrique Alves, dando conta da falta de avanço nos entendimentos entre lideranças partidárias no Congresso para a votação da reforma política. Foi a crônica de uma morte anunciada. De há muito sabia-se que a reforma tinha ido a óbito. Faltava firmar o atestado legal e ensaiar a cerimônia das exéquias. Na verdade, a reforma política sempre foi uma quimera, uma espécie de objeto invisível, a despeito da propaganda que se forjou em torno dela. O esboço não prosperou por falta de consenso, eis a conclusão ou o arremate. Os temas polêmicos sempre foram sendo escanteados porque não havia um mínimo de entendimento. E, nesse compasso, a reforma desandou.

Dizer que o único ponto de acordo repousa na coincidência de eleições para ajustar o calendário e evitar a repetição de disputas a cada dois anos é um insulto, uma estultice que se pratica para com a opinião pública, para com a sociedade mobilizada recentemente em outras campanhas como a da Lei da Ficha Limpa, que surpreendentemente “colou” num país em que, como dizia Tancredo Neves, há certos dispositivos que pegam e outros que não pegam. Igualzinho a certas vacinas. Algumas desencadeiam filas em postos de atendimento. Outras não registram um pé de pessoa para a eventual imunização, por mais que se faça marketing de esclarecimento ou movimento de conscientização.

A exegese que se pode fazer de toda a pantomima armada é a de que cada partido ou parlamentar legislou em causa própria, buscando favorecer seus interesses estritos em jogo. De repente, o que atraía a atenção do deputado federal Luiz Couto, do PT da Paraíba, não batia com o que cogitava o deputado federal Efraim Morais, do Democratas. Era inevitável que se materializasse o “cada um por si”. O que se discutia, finalmente? O financiamento público ou privado de campanhas eleitorais, a coincidência das eleições, o instituto da fidelidade partidária, a quantidade de partidos no cenário pulverizado da realidade brasileira, o formato das coligações, proporcionais e majoritárias. E outros penduricalhos, colocados de encomenda a pretexto de propiciar o diálogo razoável, que resvalasse para a decisão da maioria, não para a unanimidade de posições.

Em primeira e última análise, o projeto de reforma política intentava dotar o país de um sistema de organização sólido, consistente, que enxugasse o panorama através da eliminação das gorduras que foram introjetadas ao longo dos anos, de acordo com as circunstâncias casuísticas. Porque, infelizmente, no Brasil, o casuísmo virou uma espécie de mantra para legisladores, quer estejam abancados no Congresso, quer ocupem poltronas no Tribunal Superior Eleitoral. A mixórdia de interesses por trás de algumas propostas faz com que a reforma propriamente dita não seja levada a sério. Opera-se como se o Brasil tivesse sido bafejado por um sistema perene, enquanto as lacunas vazam pelo ladrão, colocando a nu as deficiências de uma estrutura que possibilitou a institucionalização do Caixa Dois, denominado, no mensalão do PT, de recurso não contabilizado. Uma afronta que foi cometida à inteligência do eleitor, ao seu poder de discernimento, à sua capacidade de decisão.

O resultado é que o Brasil é um dos países mais atrasados em termos de aperfeiçoamento do sistema político e da organização partidária. O voto distrital sensibiliza apenas uma minoria. A cláusula de barreira acaba sendo tumultuada por instintos paternalistas, que ao invés de assegurar a liberdade de expressão e de representação para minorias, oficializa o instituto da legenda de aluguel, disponível para a barganha deslavada entre os consórcios dominantes da esfera de poder. E o que dizer da polêmica sobre a reeleição? Quais os limites que a reeleição deveria ter, ou conter? Monta-se um circo, uma farândula de sarracenos, em torno de questões cruciais para o eleitor. O Congresso é culpado, pela sua leniência, pela sua demora em fechar consensos sobre questões controversas. Chora, depois, sobre o leite derramado, insistindo em culpar o TSE por legislar. Não há espaços vazios, senhores da política!

Logo teremos a convocação para a missa de sétimo dia, pelo falecimento da reforma política num país que se jacta de ter avançado em muitos pontos. O difícil é encontrar quorum para essa cerimônia, adrede engendrada pelos donos do poder, mesmo na esfera do Legislativo, que teria a obrigação de fazer contraponto ao Executivo. Uma lástima!