“Eleito” com um voto

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Nonato Guedes

Na coleção “Caros Amigos”, versando sobre a ditadura militar no Brasil, lê-se que bastou um voto para eleger Ernesto Geisel presidente da República. Na tarde de 18 de junho de 1973, o então presidente Médici chamou à sala de reuniões do Planalto os ministros, deputados e senadores fiéis, sentou à cabeceira da mesa e disse:

– O candidato em que me detive preenche de modo superabundante os pressupostos, havendo a mais completa segurança de que não permitirá, uma vez investido na presidência, sofra qualquer desvio a filosofia econômica, social e política a que se filia a ordem revolucionária.

A tal ordem revolucionária havia sido o golpe deflagrado no dia 31 de março de 1964, que acabou produzindo uma safra de generais no exercício da mais alta magistratura do país. Médici, ainda na célebre reunião, disse mais uma dúzia de palavras elogiosas sobre quem achava que devia ocupar o cargo que ele deixaria, e arrematou: “Quero referir-me ao nome, sob todos os títulos ilustre, do general Ernesto Geisel”. Seguiram-se aplausos, e todos foram embora contentes. Com apenas um voto, o de Garrastazu Médici, Geisel estava “eleito” presidente da República.

Augusto Geisel, o pai de Ernesto, era imigrante alemão, chegado ao Brasil em 1883. Certa feita, numa roda de amigos, profetizou: “Ainda hei de ter um filho general do Exército”. Teve três: Orlando, Henrique e Ernesto. Uma família que marcaria com bota militar o destino do povo brasileiro. Nascido em Bento Gonçalves, na serra gaúcha, no dia 13 de agosto de 1908, Ernesto entrou no Colégio Militar de Porto Alegre em 1921 e se formou oficial na Escola Militar do Realengo, no Rio, em 1928. Foi lá que ganhou o apelido de Alemão, que odiaria. Pelo porte, parecia maior que o metro e 77 de altura, e um estrabismo lhe punha um aspecto inquietante no olhar. Participou da Revolução de 1930. Casou-se com a prima-irmã Lucy Markus, com quem teve dois filhos: Amália Lucy e Orlando, que morreria atropelado por um trem aos 16 anos. Getúlio Vargas o manda para a Paraíba, onde vira secretário da Fazenda aos 25 anos.

Em 1935, Ernesto Geisel participou da repressão à Intentona Comunista no Rio. Ajudou a derrubar Vargas em 1945. Na crise da renúncia de Jânio Quadros, acumulou grande poder: Ranieri Mazzili, presidente interino entre 25 de agosto e 7 de setembro, quando Jango toma posse na presidência, o nomeia chefe do Gabinete Militar da presidência e secretário-geral do Conselho de Segurança Nacional, sem perder os cargos de comandante militar de Brasília e da Décima Primeira Região Militar. Na manhã do dia 31 de março de 1964, Geisel se incorporou ao estado-maior golpista. Castelo o promove a general-de-exército. Com Médici, tornou-se presidente da Petrobras até 1973.

Já no cargo de presidente, em Brasília, acordava às seis horas da manhã. Usava sapatos, meias e ternos pretos, camisa branca e gravata escura, com algum detalhe vermelho. Terminava a rotina às seis da tarde e recolhia-se às 11 da noite, mas teve que passar a tomar remédios para dormir, o que já não combinava com a fama de “Alemão”. Foi tido como o presidente que deflagrou a abertura política, promovendo o que ficou conhecido no jargão político como distensão lenta, segura e gradual. Sua trajetória foi controversa. Por exemplo: é certo que Ernesto Geisel demitiu Sylvio Frota do ministério do Exército, ao descobrir que ele tramava um golpe para assumir o poder. Também demitiu, sob pressão, o general Ednardo D´avilla Mello do comando do II Exército em São Paulo quando ficaram evidentes os assassinatos, por tortura, dentro do presídio, de figuras como o jornalista Vladimir Herzog e o operário Manoel Fiel Filho. Mas Geisel também decretou a reforma do Judiciário, com o fechamento do Congresso Nacional. Ou seja, dava uma no cravo e outra na ferradura.

Ao comentar que só num país como o Brasil um homem como ele poderia chegar a presidente da República, explicou: “Como é que se chega ao meu nome? Ora, porque fulano é cretino, sicrano é burro, beltrano é safado! Isso é jeito?”. Não era, mas ele aceitou com prazer as regras do jogo. Para jornalistas paraibanos que trabalhavam em “A União”, ficou uma amarga lembrança. No episódio do seu anúncio, a redação do jornal tascou em manchete de primeira página: “Orlando Geisel é o novo presidente da República”. O irmão, que fora ministro do Exército, era mais conhecido que ele. Fiel ao regime, o então governador Ernani Sátyro desembarcou na Paraíba furioso, demitiu os dirigentes do jornal oficial e o então secretário Noaldo Dantas. Era a forma de mostrar serviço ao poder de plantão e punir os relapsos profissionais do jornal mais que centenário.