"O diabo chega primeiro"

Eilzo  Matos
Reencontrei, inesperadamente, José Ronald Farias,[1] de antiga e amistosa convivência que não via há muito tempo. Discretamente ele aproximou-se da mesa onde eu conversava com amigos no Manaira Shopping, sentou-se, mostrou-me um livro que trazia –  o romance O DIABO CHEGA PRIMEIRO. Ele era o autor. A modesta edição de capa em cartolina flexível, lisa, num amarelo impreciso, o título e o nome do autor em letras negras, borradas como em tinta fresca, e curiosa ilustração: o busto de uma mulher visto de perfil, com a cabeça levemente caída, e o design indicativo de uma expressão do pensamento. Num circulo figuram os vultos de dois homens armados de pistola num enfrentamento mortal: o mais alto com a arma apontada para a cabeça do mais baixo que tinha o tronco levemente dobrado, como numa posição de ataque mirando o peito do outro, ou, talvez, caindo baleado.
 Quis pensar algo desagradável sobre o livro, mas me contive. O autor não é do tipo de pessoas que se prestam à crítica ou à galhofa. Apesar do trato comum é personalidade destacada na capital. É PhD em física nuclear. Conversamos sem maior efusão. O livro que eu folheava, ele adiantou, fora prometido para outra pessoa, e dirigiu-se à livraria para pegar outro exemplar para mim. Agora sinto a complicação e dificuldade que tenho pela frente, sem maior experiência e conhecimento acadêmico da teoria da literatura (que se impõe), comentar e fazer análise crítica de tal autor. Farei apenas breve comentário apreciativo.
A leitura logo nas primeiras páginas abalou-me. O livro é um monumento, falo como se designa popularmente algo acima do comum; tecnicamente e literariamente também, pois se trata de uma narrativa de fatos e descrição de raciocínios, da interpenetração de agendas, da elaboração de um estilo recriado ou aprimorado por ele, de um romance na linha moderna do realismo nada memorial, mas sem desprezá-lo, vivo em referências, algumas delas ilustrativas. O tema, recorrente por si, são os desajustes da vida das pessoas, o desenlace trágico de suas relações criminosas. O cenário é a nossa pequenina e heróica Paraíba mulher macho sim senhor!
De maneira curiosa, o autor começa, como é praxe nas peças musicais, com uma abertura (não um prefácio), um tanto patética. Talvez desarrazoada, intuitiva e pedagogicamente aliciadora. Deblatera um advogado (profissional maldosamente tido pelo populacho como símbolo do “jogo duplo”) imbuindo-se de sentimentos cristãos de justiça, e também acusatórios. Sim senhor, a overture  é patética. Porventura atravessar uma rua onde trafegam veículos automotores não é algo arriscado? Em tudo há um misto de emoção e tragédia. Assim a vida é travessia, como assinala a nossa vã filosofia.
Afinal, o romance retrata racionalmente a vida como ela é, ou seria, recriação, no caso, por um estilista admirável: não do estilo-embelezamento da frase em que se compraziam Latino Coelho e Coelho Neto; nem da en-genhosa reinvenção prosódica do texto impresso, como fez Saramago, mas da construção de um romance de cunho policial, que, embora explore o modelo não o é, vazando a linguagem do popular ao erudito, e do fato à ciência que transita facilmente, sem mais exigir do ledor que a cuidadosa fixação na memória de fatos, raciocínios e conceitos sobre a conduta dos personagens e das evidências que marcam a personalidade de cada um, no entrecho entre vulgar e precioso.  A história e a geografia, como material de fundo romanesco vêm do período colonial da Paraíba aos dias atuais, da paisagem urbana ao ambiente rural como traços e aspectos que chegaram ao presente.  Em suma a crônica, a saga familiar, aqui e alhures, c omo sempre.
Pense o leitor nos momentos vividos na igrejinha antiga de sua cidade, a que vem da colônia, num ambiente restrito e circunscrito à vida local, os olhares ligeiros cruzando-se, perquirindo e anotando. Este, o signo do es-critor José Ronald Farias.
 A arquitetura do templo, na sua construção de paredes largas, a torre mourisca, arcos plenos interligando a nave central e as laterais percorridas pela Via Sacra, as imagens dos santos pintadas em cores vivas, portas e janelas de madeira pesada, serrada em tábuas com ornatos em alto-relevo quadrangulares superpostos, dos paramentos, das pinturas de linhas confluentes, em obediência à liturgia e a teologia cristã, principalmente, que guardam, enfim, no limite dos seus traços, a vida na favela e no castelo.
 No caso do José Ronald Farias, ali vivenciaram as famílias conhecidas, imaginadas, recriadas, nos últimos séculos, os impasses do pecado e do perdão. Não é essa a vida dos homens?  As volutas, as folhas, no emaranhado da interposição de seres míticos, assombrosos nas mór-bidas fácies ameaçadoras, inspiram a inquietação de uma linguagem que envereda múltipos e intercorrentes caminhos, no seu romance. O destino final. Eis o otimismo do autor: a confiança no futuro, na imortalidade do romance como explicação da vida social –  não do seu, especificamente  O barroco, enfim, na arquitetura que emoldurou a infância colonial-portuguesa, guardada na memória dos filhos do Brasil.
Cuide-se o leitor. Eu pelo menos, perdi durante a leitura, a linha do enredo, o sentido do tempo, em alguns momentos, nas encruzilhadas de suspiros inter-familiares, no cerimonial exigido pelos temas em curso: das ciências que buscam o significado real morfológico da existência dos seres, o sentido da vida  –  os signos darwinianos. E tudo termina na conclusão dolorosa da desnecessidade da compreensão, que na verdade, nada explica. Em suma o pecado, o arrependimento e o perdão. A solução final, incongruente.
Tudo que está no livro – os fatos e as idéias – e representa o mundo real, absolutamente na ordem aceita do conhecimento, e o torna típico e curioso, resulta da ciência do escritor na descrição de fenômenos do espírito; na análise dos acontecimentos que se entrecruzam, geram o clima, e resultam do comportamento dos personagens na cena. Surpresa igual despertou-me a leitura de LABIRINTO, de André Figueiredo, nos anos Setenta do século passado, inscrito pela crítica  na linha do romance  barroco latino-americano. Então, naqueles idos eu exclamava e repetia: “Este livro vai explodir!” Eu acreditava no que dizia e repetia nas conversas em que entrava a literatura paraibana, nacional, latina. Não aconteceu. Falha minha?  Nem tanto. Caio Prado já censurou a prática da “igrejinha” (Em Defesa da Cultura) na literatura, e argumenta que entre os anos vinte e trinta os romance-revelação, eram obrigatoriamente de autores nordestinos. Recentemente o falecido Bruno Tolentino fez idêntico reparo aos grupos de intelectuais que se compraziam em citar e serem citados pela galera que ocupava cátedras, espaços de jornais no sul do país.
As descrições e o protagonismo, alcançam a geografia e a história, na expressão de referenciais que envolvem o nosso meio. Mas ressalto o turbinado efeito ambiental e mental, só encontrados em Poe, Dickens, calcados no efeito surpresa, cortarzariano,  e a precisão científica ou pretensa, no aprofundamento de situações do pensamento e da conduta. Algo freudiano, inaceitável para mim, por se fundamentar em conclusões dedutivas de causas inexplicáveis porque um simples e leviano gosto do tempo, somente.
Não conclui a leitura do romance em questão, mas o farei. Não é preciso, entretanto, ir além de dois ou mais capítulos para ver o escritor por inteiro. Bastam a vivacidade da linguagem revelada na intercomunicação de palavras e descrição de sentimentos em verdadeiras exegeses de caráter científico. A trama e o entrecho vêm depois.   ………..  EILZO MATOS