Palmas para a Polícia do bem

Rubens Nóbrega

Problema dos mais graves da vida brasileira em todos os tempos e regimes, a corrupção assume sua face mais cruel e mais lesiva à moralidade e à boa cidadania quando o corrupto vem a ser alguém a quem muita gente ainda chama de agente da lei.

Tem coisa pior do que ver ou saber de um policial usando a farda, a arma ou o poder de intimidação que tem, até como prerrogativa de função, para achacar, chantagear e tirar proveito de vítimas indefesas, em geral cidadãos de bem, mas por injustiças estruturais econômica e socialmente vulneráveis?

Mais triste ainda constatar quão difícil é encontrar quem já não tenha se envolvido pelo menos uma vez na vida com a corrupção policial, não raro e lamentavelmente fazendo o papel de corruptor ativo. Refiro-me àquele que, não importando a quantia nem a pedida, dá bola, propina ou o ‘guaraná’ ao mau policial viciado no suborno ou em ameaçar quem resiste em lhe subornar.

Confesso que já me vi envolvido em uma situação assim. De tal episódio lembro até hoje com amargura e arrependimento por ter cedido às ameaças que dois policiais de trânsito faziam a uma pessoa que me era muito próxima e querida, desafortunadamente responsável por bater num ônibus que fazia a linha Geisel via Epitácio, em João Pessoa.

Aconteceu nos anos 90. No meio da tarde de um começo de semana, tive que sair às pressas da repartição onde trabalhava para atender à urgência nervosa daquela pessoa. Chegando ao local do ‘sinistro’, quem me chamou encontrei chorando, trêmula, apavorada diante do terrorismo que os bandidos fardados faziam para arrancar-lhe o ‘toco’.

Ela pediu-me pelo amor de Deus para dar o dinheiro que os meliantes queriam, pois eles ameaçavam, inclusive, apreender e rebocar o carro sinistrado. Além de tudo, desgraça pouca é bobagem: o carro não era dela, mas de zeloso parente que viajara ao exterior e lhe confiara a guarda e usufruto temporário de um Kazinho bolinha, modelo antigo. Paguei uns 150 paus para livrar a moça de aborrecimentos que, ela mesma pressentia, seriam enormes, intermináveis.
Delegado e agentes indiciados

Tenho e mantenho, somado ao trauma pelo qual passei há quase 20 anos, horror a policiais daquela qualidade. Daí por que vibro e bato palmas quando tomo conhecimento de operações como a realizada ontem pelo Grupo de Operações Especiais (GOE) da Polícia Civil da Paraíba, resultando no indiciamento de um delegado e cinco agentes por concussão.

Esse crime, segundo o Código Penal, está inserido no rol daqueles cometidos por servidor público contra o Estado (em sentido amplo, institucional, não meramente territorial). Na prática, significa “exigir, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida”. A pena prevista para o criminoso é de reclusão, de dois a oito anos, e multa.

A ação do GOE decorreu, suponho, de uma decisão de governo ou, mais especificamente, da determinação pessoal do secretário Cláudio Lima, da Segurança Pública, de combater a corrupção na Polícia. Mas, para além do reconhecimento e do aplauso dos governados honestos e sérios que formam a maioria da população, a operação policial deve ter, espero, um efeito pedagógico incrível, sobretudo naqueles que persistem no crime e ainda não foram alcançados por iniciativas como aquela empreendida ontem na Capital.

Vale registrar, por fim, o imenso agravante da acusação dirigida aos policiais indiciados: a chantagem da qual seriam autores tinham traficantes como alvo, pois eles cobrariam grana alta para proteger ou soltar bandidos da pior espécie, responsáveis diretos pelo grande flagelo humano da contemporaneidade.
Desde que a Polícia começou

Marcos Bretas, doutor em História e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), garante que “a corrupção policial se confunde com a própria história da polícia”. Em entrevista concedida em 27 de julho do ano passado ao jornal Gazeta do Povo, do Paraná, ele lembra que “a polícia foi constituída no Brasil sem pagamento ou com salários muitos baixos e apurando renda dos serviços que prestava”. Daí…

O Professor Bretas não demarca o ponto de partida dessa história, mas se a corrupção na polícia é mesmo um pecado original da nacionalidade é possível dizer que as duas começaram no início do século XVII. Desde lá a corrupção era parte da função policial. “Quando se começou a distinguir, com a instituição de regras para proibir o recebimento extra, a corrupção permaneceu com várias práticas de ‘dar um jeitinho’, com pagamentos que vão desde uma cervejinha até valores altíssimos”, diz.

Segundo ainda Marcos Bretas, “essencialmente há dois tipos de corrupção, que são diferentes e que devem ser tratados de forma diferente. Uma é aquela em que aconteceu alguma coisa e o policial recebe dinheiro ou benefício para fechar os olhos para o fato passado. Pode ser alguém que avançou um sinal ou até um atropelamento. A outra corrupção é aquela que permite que o crime continue atuando. O corrupto recebe dinheiro do jogo do bicho ou do tráfico, por exemplo, para que os bandidos continuem cometendo crimes”.

Pelo visto, o esquema desmantelado ontem na Polícia paraibana enquadrar-se-ia no segundo tipo de corrupção descrito pelo Professor.