Em documento usado para justificar a rejeição de diretrizes de tratamento da Covid-19 ao SUS, o Ministério da Saúde contraria entidades científicas e afirma que há eficácia e segurança no uso da hidroxicloroquina contra a Covid-19.
Na mesma nota técnica, a pasta declara que as vacinas não demonstram essas características. Os textos arquivados contraindicavam o uso de medicamentos do chamado kit Covid.
A manifestação antivacina foi feita em tabela dentro de documento assinado pelo secretário de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos, Helio Angotti, uma liderança de ala do governo defensora das bandeiras negacionistas do presidente Jair Bolsonaro (PL).
As diretrizes rejeitadas haviam sido elaboradas por especialistas de entidades médicas e científicas e aprovadas pela Conitec (Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS).
Na mesma tabela, o ministério afirma que a hidroxicloroquina é barata, não tem estudos “predominantemente financiados pela indústria”, mas não é recomendada por sociedades médicas. Já a vacina, segundo a pasta, é cara, tem estudos bancados pela indústria e é recomendada por essas entidades.
Esse argumento reforça distorções já levantadas pelo presidente Bolsonaro de que há interesses impróprios na aprovação das vacinas.
A diretora da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) Meiruze de Freitas reagiu à nota da Saúde e disse à Folha que “todas as vacinas autorizadas no Brasil passaram pelos requisitos técnicos mais elevados no campo dos estudos clínicos randomizados (fase I, II e III) e da regulação sanitária”.
“Não é esperado e admissível que a ciência, tecnologia e inovação no Brasil estejam na contramão do mundo”, afirmou a diretora. “É preciso que todos estejam unidos na mesma direção, ou seja, salvar vidas”, completou.
O Ministério da Saúde aponta que não há demonstração de efetividade da vacina “em estudos controlados e randomizados” nem de segurança “em estudos experimentais e observacionais adequados”.
Ainda afirma que outros tratamentos contra a Covid não têm resultado, como manobra de prona e ventilação não invasiva. Na tabela, a pasta diz que anticorpos monoclonais funcionam.
Procurados, a assessoria da Saúde e o ministro Marcelo Queiroga ainda não se manifestaram sobre a tabela.
A tabela contradiz declarações oficiais da Saúde. Em nota enviada à Folha na sexta-feira (21), a pasta disse que “a vacinação é segura e foi autorizada pela Anvisa”.
Ao assumir o Ministério da Saúde, em março de 2021, Queiroga anunciou que promoveria o debate na Conitec para encerrar a discussão sobre o uso do kit Covid. Ele indicou o médico e professor da USP Carlos Carvalho, contrário aos fármacos ineficazes, para organizar grupo que iria elaborar os pareceres.
Queiroga, porém, modulou o discurso e tem investido em agrados a Bolsonaro para se agarrar ao cargo. Ele passou a evitar o tema, ainda que admita a colegas que não vê benefícios no uso destes medicamentos.
O ministro ainda alterna, em discursos, elogios à compra e entrega das vacinas com acenos à ala bolsonarista que duvida da segurança e eficácia da imunização. Gestores do SUS cobram que Queiroga, além de atuar na compra das doses, faça campanha de estímulo a imunização das crianças.
Nas redes sociais, porém, a Saúde aposta em reforçar que a imunização dos mais jovens é uma decisão dos pais e responsáveis.
Especialistas e sociedades médicas que participaram da elaboração da diretriz preparam um recurso ao ministério para reverter a decisão de rejeitar o texto.
Devem assinar o recurso a Amib (Associação de Medicina Intensiva Brasileira), a SBI (Sociedade Brasileira de Infectologia), a SBPT (Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia) e a AMB (Associação Médica Brasileira).
“Não tem lógica e base técnica nenhuma essa análise [do ministério]”, afirma o infectologista Julio Croda, pesquisador da Fiocruz e professor da UFMS (Universidade Federal do Mato Grosso do Sul). “Mostra claramente que é uma decisão política [rejeitar a diretriz] e não técnica”.
“Já passou do ato de autonomia médica para algo criminoso, de indução do uso de medicações sem nenhuma comprovação científica”, disse ainda Croda.
Professor da Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública, Luis Correia disse que a tabela da Saúde é “caricatural”. Ele afirma que a nota seleciona estudos de má qualidade para afirmar que a hidroxicloroquina é segura e eficaz contra a Covid.
“É simplório ainda dizer que o custo da vacina é alto e da hidroxicloroquina, baixo. A vacina é muito custo-efetiva, faz com que a pandemia diminua. É um investimento vantajoso. Hidroxicloroquina não resolve a pandemia”, disse Correia, que também representa o Conass (Conselho Nacional de Secretários de Saúde) na Conitec.
Angotti também questionou, na nota da Saúde, a metodologia utilizada pelos especialistas, o rigor técnico dos estudos e até mesmo possíveis conflitos de interesse do grupo.
O secretário rejeitou três capítulos da diretriz hospitalar da Covid, todos aprovados por unanimidade na Conitec. Além disso, arquivou o texto sobre tratamento ambulatorial, aprovado por sete a seis no mesmo colegiado.
” Essas vacinas que são alvos de ataque por parte do secretário estão autorizadas em todas as agências do mundo”, disse Nelson Mussolini, presidente-executivo do Sindusfarma (Sindicato da Indústria dos Produtos Farmacêuticos).
“Todos os estudos são patrocinados pelo detentor da patente”, afirmou ainda, sobre menção do ministério ao patrocínio da indústria às pesquisas sobre vacina. Mussolini é membro da Conitec como representante do CNS (Conselho Nacional de Saúde).
Em movimento liderado pelo secretário, o governo tentou boicotar o debate da Conitec. Agora, o mesmo grupo quer retirar do comando da comissão a servidora Vania Canuto, que votou a favor do texto que contraindica a hidroxicloroquina, entre outros medicamentos.
Fonte: Folha de S.Paulo
Créditos: Folha de São Paulo