O noticiário dos grandes e pequenos meios é dominado pela discussão em torno do perfil do candidato a vice na futura chapa do ex-presidente Lula, e, em meio a mil e uma conjecturas, o nome que vem à baila é o do ex-governador Geraldo Alckmin.
A maioria dos “especialistas” aposta na aproximação dos antigos adversários, e políticos com currículo em ambos os lados do alambrado reclamam sua necessidade, seja para garantir a eleição do petista, seja para assegurar a futura governabilidade.
Os mais vividos lembram a impetuosos petistas que não se deve contar com o ovo ainda no fundo da galinha; outros, gatos escaldados, recordam a frustração do segundo mandato da presidente Dilma Rousseff, impedida de governar, quando lhe faltaram apoio popular e maioria no Congresso.
Mas há, igualmente, os que se perguntam qual campanha política e qual programa de governo pode harmonizar a socialdemocracia petista e a direita neoliberal. A última experiência deixou muito a desejar.
O nome do ex-governador paulista é apresentado em rodas conspícuas do PT como a alternativa que falaria à alma do presidente, que, certamente, estará considerando a distância ética que separa o ex-tucano do vice imposto a Dilma Rousseff em 2014.
Mas outras hipóteses são aventadas (como o atual presidente do Senado) e outras costuradas à luz das velas, enquanto os habitantes da planície nos distraímos com o to be or not to be de Alckmin.
Tomando a aparência pela realidade, a imprensa, e com ela o chamado “mundo político”, termina por evitar o debate sobre o essencial: o caráter político-programático que devem assumir as candidaturas, a começar pela do ex-presidente, em face de seus compromissos históricos com as esquerdas brasileiras, e com o país que promete reconstruir naquele que pode ser o último e maior projeto de sua vida.
Como desdobramento da proposta programática faz-se necessário considerar os meios de sua realização, que passam, inevitavelmente, pelo Congresso Nacional, onde as forças progressistas são esmagadas por uma maioria corrupta e reacionária. Discutir a construção de novas bancadas passa a ser, portanto, uma questão também estratégica.
Bloquear este debate é um lastimável desserviço à democracia.
São graves os riscos, para a democracia e para o futuro governo (tratando-se do projeto de um governo de centro-esquerda), se a campanha eleitoral, discutindo uns poucos nomes, ainda que ilustres, tiver como sua marca a ausência programática.
Ficará no toma-lá-da-cá que, se é da essência da “pequena política”, consagrada pelo Centrão, deve ser rejeitado pela esquerda.
Não nos basta a satisfação de impedir a continuidade do processo de desconstituição econômica, política e ética do país.
Ainda que esta seja a grande tarefa, a eleição de Lula não é um fim em si mesma. É preciso dizer o que faremos, que Brasil queremos, que Brasil pretendemos legar ao fim do mandato.
Essa discussão é fundamental como tática e estratégia, porque tanto assegura a eleição quanto indica as bases de sustentação do governo; é fundamental para o compromisso de todos os que aderirem à frente partidária (de factibilidade ainda discutível) e contribuirá para a elevação da cultura política das massas, uma preocupação que não pode ser descartada pelos socialistas e pelas esquerdas no seu amplo leque ideológico.
Não se trata, portanto, de um compromisso simplesmente moral, embora o procedimento ético deva ser um fundamento de nossa política.
Se devemos satisfação à sociedade à qual vamos pedir o voto de confiança, precisaremos de seu apoio quando as forças do atraso se levantarem – e se levantarão, ninguém duvide – contra nosso projeto.
A direita civil e militar, a burguesia reacionária, os milicianos não ensarilharão as armas. Os tempos vividos de 2016 até aqui estão ainda muito próximos para que suas lições possam ser esquecidas.
Igualmente, não podemos ignorar que no 7 de setembro último estivemos à beira da consolidação do golpe de Estado militar que o capitão desde lá atrás maquinava com o apoio de seu bando.
Como não podemos deixar de pôr as barbas de molho quando o sedicioso general chefe do Gabinete de Segurança Institucional da presidência da república declara precisar tomar Lexotan na veia “para não levar Jair Bolsonaro a tomar atitude mais drástica contra esse STF que está aí”?
Que medida seria essa?
A ameaça insólita foi ditada no Curso de Aperfeiçoamento e Inteligência para agentes da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), e por essa grei de arapongas vazada.
De outra parte, o presidente do TSE precisa vir a público para explicar a nomeação do ex-ministro da defesa, general Fernando Azevedo, para o cargo de Diretor-Geral do Tribunal, exatamente quando nos preparamos para uma das mais tensas eleições na história republicana, e nas quais o ex-chefe do general, despojado de escrúpulos, é diretamente interessado.
As esquerdas de um modo geral, e os comunistas de um modo mais específico, herdaram do velho PCB a crença, ou fé (pois sem apoio na realidade), no legalismo da caserna.
Em 1947, no governo Dutra, viram os acordos de cúpula rasgados, quando o registro do partido e o mandato de seus parlamentares foram cassados.
Em pleno 17 de março de 1964 (Conferência de Prestes na ABI), ainda apostavam na impossibilidade de golpe militar.
Daqui em diante a persistência na ingenuidade chamar-se-á burrice.
Diante da história, o petismo deveria considerar que as disputas pelo poder, e é disto que se trata, são resolvidas por uma equação que se chama correlação de forças. E a força de que dispomos, ou mais precisamente, de que podemos dispor, é a da mobilização popular.
Foi o povo nas ruas, sensibilizado e organizado, que derrotou o golpe de 1961.
Por outro lado, foi nossa fragilidade (nela a crise de nossos partidos e do movimento sindical) que permitiu o golpe de 2016 e seus desdobramentos, como a prisão de Lula, que, sabemos, nada obstante sua violência e sua arbitrariedade, não provocou a temida reação das massas.
O ex-presidente Lula representa, na política e no processo eleitoral, a antinomia do bolsonarismo, e, por isso mesmo, galvaniza a vontade majoritária da sociedade, desejosa de ver-se livre do engodo representado pela aliança do capitão com os engalanados que o cevam e se cevam em sinecuras e doces vilegiaturas, como a que regala o inepto general Eduardo Pazuello.
Mas, para bem e para mal, a campanha que se avizinha, como qualquer outra, não se encerra na disputa clássica, simplesmente porque, como ensina a história recente, a política não entra de férias após a proclamação dos resultados pelo TSE.
Ao vitorioso cabe o ônus da governança, e esta traz à ribalta a chamada realpolitik. É quando a porca torce o rabo.
O governo precisará, essencialmente, de maioria no Congresso e pelo menos da boa-vontade do Poder Judiciário, além de diálogo com o oligopólio da imprensa e com a poderosa Faria Lima, onde tem assento uma burguesia desapartada dos interesses do país e de seu povo.
Independentemente dos interesses desse mafuá de negocistas que é o Centrão, um governo de direita, ou extrema-direita como o atual, ou de centro direita, contará sempre com o apoio do establishment.
Basta anunciar largo programa de privatizações, autoritarismo na política e neoliberalismo na economia, restrições aos direitos dos trabalhadores e, na nas relações internacionais, alinhamento serviçal aos interesses do império hegemônico.
Outro, porém, é o desafio que se colocará a um eventual governo de centro-esquerda, pois sua sustentação dependerá do apoio político que lhe possa oferecer a sociedade.
O desafio será conservar (e se possível aumentar) no governo o apoio popular auferido no processo eleitoral.
Em 1954, o golpe contra Vargas só foi exitoso porque o presidente não logrou preservar o apoio das massas que o levara à consagradora vitória eleitoral de 1950.
Em 2016, inumeráveis fatores concorreram para a desestabilização da presidente Dilma Rousseff, a começar pela maquinação golpista de seu vice em conluio com o presidente da Câmara dos Deputados, cuja eleição não conseguira evitar.
Mas o ingrediente decisivo no golpe de Estado concluído foi a dificuldade de mobilizar as grandes massas na defesa do seu mandato. A questão democrática e a legitimidade de seu mandato não se revelaram suficientes para mobilizar as ruas.
A esta altura, não é necessário lembrar que 2022 não será o repeteco de 2002, tanto quanto seu possível terceiro mandato não será um “vale a pena ver de novo” dos dois anteriores.
O Conselheiro Acácio lembra que o mundo mudou nesse vinte anos, e mudou o Brasil, com ele mudaram muitas das nossas concepções, e, principalmente, mudaram as condições históricas.
Mudou também, por óbvio, o ex-presidente, mudou sua visão de mundo e do país que governou.
O silêncio de Lula relativamente ao que pretende fazer tem muitas possíveis explicações, desde seu engenho tático, adiando definições para facilitar composições, às próprias dificuldades de seu partido de encontrar consenso em torno de questões centrais, como a política econômica de um modo geral, o que fazer com a privataria levada a cabo pelo consórcio governante, a reforma fiscal, as reformas trabalhista e previdenciária, a necessidade de revisão do federalismo, a reorganização política, a revogação da PEC 95 etc.
Do que pode ser o futuro governo, só podemos vislumbrar, até aqui, a política externa.
A presença de Celso Amorim no grupo mais próximo de Lula, e as recentes viagens do candidato à Europa e à Argentina, indicam a retomada daquela política ativa e altiva que, nos orgulhando, tanto bons serviços prestou ao país.
Este ponto é da maior relevância. A eleição de Lula é importantíssima não apenas para nosso país. Ela é aguardada pelas forças progressistas da América do Sul como um fator de unificação, estabilidade e avanço político.
Para o mundo, Lula desempenhará papel essencial na liderança da América Latina, disseminando o diálogo quando Joe Biden, dando continuidade a Trump, ensaia a reativação de uma guerra fria que não interessa a um mundo às voltas com pandemias, desemprego, fome e devastação ambiental.
O Brasil, com Lula, dialogando, como é de seu feitio, com as mais diversas tendências mundiais, poderá ser o condutor de uma nova política de paz. Para o velho continente representamos, liderando a América do Sul, a expectativa de barreira à onda direitista.
Por óbvio, nem o Pentágono nem o Departamento de Estado ignoram esse quadro.
Jamais outro governo careceu, como carecerá o eventual governo de centro-esquerda a ser eleito em 2022, do amplo apoio das grandes massas. Esse apoio, porém, não cairá do céu como benção dos deuses. Cobra muito trabalho, que já tarda.
Fonte: Pensar Piauí
Créditos: Polêmica Paraíba