Andréa Beltrão teve uma surpresa boa quando viu no ar a cena em que sua personagem se masturba na cama. A intérprete da Rebeca de “Um lugar ao sol” chegou a duvidar de que aquela imagem, representando a autonomia no desejo da mulher, seria mesmo exibida. Não só foi (no último dia 24), como causou na web, levando o nome da atriz aos trending topics do Twitter.
– Nesses tempos tão retrógrados, tão Idade Média, achei que nem fosse passar. Quando vi, pensei: “Que ótimo!”. Achei um bom barulho, uma boa provocação – conta a atriz.
E tem sido assim, uma boa provocação, toda vez que Andréa surge na novela das 9 trazendo temas como menopausa, sexualidade na maturidade e relacionamento com um homem bem mais jovem. Após 20 anos longe das novelas, a atriz tem brilhado em cada capítulo na pele de uma ex-modelo em crise com a idade e no casamento, que verbaliza sobre esses assuntos sem romantizações, conduzida com elegância pelo texto sensível da autora Licia Manzo.
Rebelde, como se define, e com as próprias questões elaboradas em 30 anos de análise, Andréa está adorando discutir no horário nobre dilemas femininos que estão no centro do debate contemporâneo. Está acostumada a sacudir a caretice desde os tempos em que encarnava a Zelda Scott de “Armação Ilimitada”, uma heroína de cabelo curtinho e óculos, que namorava dois surfistas ao mesmo tempo.
No Teatro Poeira, espaço que mantém ao lado da comadre Marieta Severo, com quem planeja uma nova peça, Andréa falou ao GLOBO. Chegou para essa entrevista usando uma máscara rubro negra (“sou louca pelo Flamengo, não perco um jogo”). Na conversa, a atriz de 58 anos, intérprete de uma roqueira que acorda do coma após 20 anos no filme “Ela e eu”, de Gustavo Rosa de Moura, disse que se acha mais bonita hoje do que na juventude e contou ter “um tesão inexplicável” no ator James Gandolfini (1961–2013). Os motivos que a levaram aos Narcóticos Anônimos e a dor pela morte do irmão foram outros assuntos abordados.
O que achou da repercussão da cena da masturbação de Rebeca? Muitas gente vibrou, mas também teve quem não gostasse. Acha que as críticas se deram pelo fato de que a autonomia do desejo da mulher ainda incomoda?
Achava que essa cena nem iria passar. Pensei: “Será? Nove horas da noite…” Nesses tempos tão retrógrados, tão Idade Média politicamente falando, tão Bíblia na mão, com todo repeito à religião de cada um… Quando foi ao ar, falei: “Ah, que ótimo”. Me mandaram algumas coisas de pessoas dizendo: “Que absurdo uma mulher se se masturbando na hora do jantar”. Bom, é que a gente não escolhe exatamente a hora que vai se masturbar, né? Cada mulher se masturba na hora em que dá vontade nela. Achei bom, achei um bom barulho, um bom combate, uma boa provocação.
Foi tranquilo fazer a cena ou, em algum momento, ficou constrangida? Não foi por acaso que a personagem estava lendo “As mil e uma noites”…
Foi o maior barato fazer. Foi com o André Câmara, um diretor homem, tinha poucas mulheres na equipe, era o maquinista… Foi legal porque foi tão elegante, delicado. Senti um puta respeito, não tive nenhum constrangimento. A Sherazade é uma feminista imensa.
Na história, o rei fica pau da vida porque foi traído, o irmão dele também, e eles começam a transar com a mulheres, que matam em seguida. A cidade fica em desespero, meninas jovens escondidas embaixo da cama. Sherazade diz: “Pai, vou me oferecer, posso mudar essa situação”. Ela, que era um poço de cultura, formada em filosofia, faz um combinado com a irmã e as duas vão ao rei para salvar outras mulheres. Através da contação de histórias super sensuais, sexuais, com irmão transando com irmã, mulher transando com cinco ao mesmo tempo, homem, com 12, surubas, ela o envolve e o faz querer ouvir mais um pouquinho no dia seguinte. No fim, ele se apaixona por ela e não mata mais ninguém.
É uma coisa linda! Levei esse livro para a gravação logo na primeira cena da Rebeca, porque é uma mulher que lê. Queria colocá-lo por ali para quando tivesse um intervalinho em cena eu pegar para ler. Não foi de caso pensado, mas calhou de, nesse dia, eu falar cadê o livro? Foi demais! Tudo a ver.
Qual e a importância do diálogo comportamental que a novela traz ao tocar em temas como etarismo, gordofobia, racismo, homofobia?
A dramaturgia de telenovela feita no Brasil é muito de ponta, avançada. Acho que o telespectador se acostumou e curte ver pular ali assuntos delicados, do dia a dia, de comportamento da sociedade, da movimentação de camadas, pessoas que saem de uma posição obscura e assumem um protagonismo. A novela tem esse lugar de jogar luz em coisas que são interessantes debater em família, tocar no assunto de noite, de segunda a sábado.
Muitas coisas estão se modificando rapidamente e isso é um sinal de saúde da sociedade. Pretos como protagonistas absolutos em propagandas de televisão, gordas, mulheres mais velhas, pessoas deficientes… Apesar de eu achar essa palavra esquisita, porque todos nós somos deficientes, né?
Acho maravilhoso poder discutir, ver as pessoas trocarem de lugar, não serem sempre as mesmas pessoas. Abre espaço. Tem uma gíria cearense que fala assim: “Ó o meio”. Tipo “sai daí, dá licença”. Acho que a gente está muito nessa hora de “ó, o meio”.
Masturbação, maturidade, menopausa são outros assuntos que estão sendo tratados na novela e sem romantização. Acha que as mulheres estão falando mais naturalmente sobre temas considerados tabus?
Na pandemia teve muito essa discussão que já vinha de antes, mas ficou mais visível, sobre os fios brancos crescendo… Não dava para pintar cabelo, essas coisas que dão uma imagem “lux luxo”, fresca. Abriu um portão, tipo: “Por que a gente tem que? O que esperam das mulheres?”. É melhor não esperar nada, porque só vamos fazer o que tivermos a fim. Esse é o melhor lugar, o da liberdade, de sermos honestas com nosso desejo. Lícia é uma mulher de 50 anos, e aproveitou bem o momento para colocar esses assuntos. A Rebeca vibra nessas situações, faz perguntas que são interessantes para a gente. E é contraditória, diz uma coisa e faz outra, bem a gente mesmo.
A menopausa foi uma questão para você? Sofreu com os sintomas?
Entrei com 50, achei muito cedo. Quando menstruei, tinha 13 anos e foi uma tragédia. Porque gostava de jogar bola, vôlei, correr, andar de bicicleta. Andar com aquele “caderno” enorme entre as pernas… Foi terrível para mim não poder ir à praia. Lembro de ir pra praia e toda hora uma amiga falar “vai na água agora”. Aí, você transa a primeira vez e poder usar O.B. Que momento libertador! Nem sei se eu queria transar rápido, acho que meu interesse estava todo no O.B (risos). Aliás, depois da primeira vez eu pensei: “Ah, é isso?” (risos). Mas também pensei: “Tudo bem, posso botar OB para ir à praia e tá valendo”.
Mas tem esse lugar marcante pra mim, como o da chegada da menopausa, que é igualmente dramático no sentido de como a vida muda. Quando ela veio, senti saudade da menstruação. Quando você percebe que ela vai embora e coisas vão acontecer, o cabelo vai ficar mais assado, você vai fcar irritada, vai ter calores. Eu tive calores, fogacho, fiquei meio doidinha… A gente viajava para um lugar congelante e eu começava a fica nua no gelo, suando de escorrer (risos). Colágeno? Um abraço.
Como lidou, fez reposição hormonal?
No começo, não. Mas aí o torniquete foi apertando, invadindo a minha questão sexual, a libido começou a ficar meio… Aí eu falei: “Não dá, bicho, vamos morrer inteira, transando” (risos). Fui na médica e pronto. Mas é um momento passagem. Acho muito legal a novela tocar nesse assunto. Rebeca é toda bacanuda, mas é cheia de questões.
Pra mim, a melhor pessoa para conversar sobre isso não é o meu marido, não tenho vontade, não tô a fim que ele fique sabendo de grandes coisas sobre isso. Meu papo é com as mulheres, com a médica. Aí a gente se derrama, xinga. É interessante, sabe, tem sua beleza. Acho que tem que ser tratado como mais um momento belo da mulher. Ela mentrua, passa pelo período em que pode ter filhos, se quiser… Porque mulher feliz não é a que teve filho ou se casou, né? A vida sem filhos também tem seus prós, suas coisas maravilhosas.
Eu sempre quis muito. Teve uma época da minha vida que eu achava que não teria nenhum namorado, que não casar com niguém, que era um bagulho mór. Aí pensava: se ninguém quiser ficar comigo, vou adotar um monte de filho. Me consolei assim. E ia mesmo. Mas namorei bastante.
Tem uma passagem do documenário sobre o Amir (Haddad), em que ele aparece com uma foto da identidade dele lá pelos 20 anos, e diz: “Mas eu era tão bonitinho, podia ter comido tanta gente… Não comi”. Quando a gente olha pra trás, pensa “mas por que eu reclamava, gente? Tudo direitinho ali? Por que deixei de ir aquela festa? Por causa desse cabelo? Cabelo bom danado, cheio…”. Falo isso para os meus filhos, mas não adianta…
Como você lida com a passagem do tempo? Gosta do seu reflexo no espelho?
Tenho muito medo dessa coisa dermatológica. Você começa a virar uma cara que não é, um corpo que não é seu, não se reconhece. Entendo mulheres que curtem, que têm prazer em se modificar. Eu me acho tão bem… Me olho no espelho e me acho tão bonita. Não penso: “Nossa, estou com 58 anos”. Mas: “Pô, estou legal hoje. Essa roupa ficou boa”. Muitas vezes, eu me acho mais bonita hoje do que quando era jovem.
Cabe a mulher também se posicionar e não cair na cobrança da sociedade patriarcal, né?
Ah, sociedade, dá licença, ó o meio (risos)! Outro dia, o Amir me mandou um Whatsapp falando só de velhice… Tão legal. Tem uma frase do Shakespeare, que diz: “Os jovens conhecem as regras, mas os velhos, as exceções”. É isso aí. O (Ingmar) Bergman falava: “Nos 40 primeiros anos de vida, você dá o texto. Dos 40 em diante, faz o comentário”.
Ainda faz um milhão de esportes? Como mantém o corpo tão elegante?
Sou viciada em esporte. Nado no mar, faço ginástica, ioga, corro, jogo vôlei. Esporte, para mim, tem a ver com ter condição para fazer qualquer coisa. Tem a estética, você fica forte, a roupa veste bem. Mas tem a coisa de levantar rápido, sabe? Teatro exige preparo.
Você parece bem confortável em cena na novela. A parceria com o Daniel Dantas, que vive seu marido e com quem rodou “Pequeno dicionário amoroso”, e a amizade com Mariana Lima na trama e também na vida real ajudaram no trabalho?
As questões da Rebeca falam de mim também, né? A amizade com Mariana é real, imensa e profunda, acho que isso transborda. Meus maridos mais frequentes (em trabalhos) são Daniel, Marco Ricca, Du Moscovis e, agora, entrou o Gabriel Leone para a minha coleção, um ator maravilhoso.
Tem uma coisa de novela que é um barato: você conhece e convive com gente que naturalmente, por falta de afinidade, de interesses comuns, não conviveria. Faz amizades improváveis. Essa bagunça é muito boa. É um lugar meio bloco de carnaval, encontra um, encontra outro…
Sou atriz de grupo, de time, de equipe (desde a origem de sua carreira, pois Andréa começou no grupo teatral Manhas e Manias, filhote do Asdrúbal Trouxe o Trombone). Acredito nisso. Tenho o grupo aqui (no Teatro Poeira), com Marieta (Severo) e Aderbal (Freire Filho), o de cinema, com Du, Daniel e Marco Ricca… Sempre um coletivo. Acho tão legal isso, crescer, amadurecer junto no ofício. É o maior barato mudar, gente nova, gente jovem e gente velha. Gosto de gente. Mas é bom entrar em um trabalho com alguém que você já jogou muita bola.
Cenas da Rebeca com Tulio mostram como o tesão do homem e da mulher podem ser diferentes. Em que a novela ajuda abordando esse assunto e também falando especificamente da sexualidade da mulher de 50 anos?
A novela faz um espelho interessante, fazer esse tipo de questão chegar na casa das pessoas num canal aberto e as mulheres saberem que “quer dizer que eu não querer transar com meu parceiro não é porque estou maluca, mas porque estou vivendo uma mudança de ciclo, uma questão hormonal?”. É muito importante falar isso. Homens batem em mulheres porque acham que elas têm um caso fora de casa. A sexualidade é um dos maiores mistérios que a gente tem na vida.
Os objetos de desejo variam de pessoa para pessoa…
É inexplicável porque sentimos tesão por determinada pessoa. Eu, por exemplo, estou vendo (a série) “Os sopranos”. Acho o Tony Soprano (James Gandonfini), um tesão alucinante. Falei com o Maurício (Farias, marido da atriz): “Que homem é esse! Cuidado, se eu encontrá-lo na rua”… Infelizmente, ele já morreu. É um bandido horroroso, demônio, assassino que corta uma pessoa em pedacinhos e depois vai para casa tomar um uísque… Não sei explicar onde é que aquilo me atravessa. É estranho. Ele é feio, mas eu o acho demais.
Acho que tem que falar de transar e cada um fala como quer. O que está acontecendo é que estamos nos falando sobre esse assunto. Muitas vezes, mulheres não conversavam com a outra pensando que poderiam se sentir diminuídas ou aquela coisa de “o meu tempo já passou”. A própria sentença do prazo de validade que a Lícia coloca na novela, de que a mulher fica desinteressante, era bem real. Aquela coisa de “ah, já estou nos calores”. Uma coisa chaaata.
Muitas mulheres ainda se colocam em segundo plano na questão do prazer. Transam mesmo sem querer só para atender ao desejo masculino, ficam presas em relacionamentos tóxicos, enquanto sonham com uma conexão mais profunda. Muitas, de 45/ 50 anos estão, se apaixonando por outras mulheres. Acha que isso tem a ver com essa busca?
Tem muito a ver, é uma questão de conexão mesmo. Porque vira uma solidão acompanhada, né? Qual é a graça de deitar na cama e transar mecanicamente. Não dá para acontecer, é muito antigo, medieval.
Você transaria com uma mulher? Já transou?
Ainda não, quem sabe? Eu transaria com mulher numa boa no dia em que me apaixonasse por uma. Já teve umas que olhei e pensei: “Nossa, que mulher incrível”. Mas tenho muita fissura por homem, gosto da coisa física ser diferente. Também tenho semelhanças engraçadas com homem, um lado muito masculino, que gosto também.
Você e Maurício têm um acordo monogâmico?
Acho que sim, nem quero saber (risos). Acho o maior barato quem tem relação aberta, mas não sou evoluída para esse lugar, estou numa encarnação anterior. Sofro mesmo que seja comigo, porque o preço a pagar é muito alto por conta da relação que tenho com esse homem, o Maurício.
Isso não é um acordo que tenho comigo, de sempre que tiver um casamento será assim. Já vivi vários tipos de casamento, mais abertos, mais neuróticos. Me casei algumas vezes. Mas, com o Maurício, nossa história se fez assim. E todo dia é um dia, constrói tudo de novo.
Não tenho medo do que possa acontecer, porque acho que está tudo aí, aberto, milhões de homens e mulheres interessantes e a gente não controla nada. Não transo essa coisa de controle do telefone celular, “tá aonde?”. Acho sacal, horroroso, deselegante. Mas é isso, não pago esse preço assim tão fácil. Quando tiver que ser, que seja de verdade e, aí, tudo bem. Mas para ver qual é, não…
Até porque, nesse ofício, a gente tem uma licença interessante de estar com outro homem, com outra mulher. Claro, estou ali interpretando, mas a fantasia é muito bem alimentada. A gente tem uma permissão para ir a vários lugares, oportunidades de beijar várias bocas, com suas combinações, licenças ou não.
Você e Maurício são duas pessoas interessantes, que devem estar discutindo na vida as questões contemporâneas que a novela coloca. De que maneira essa troca de vocês deságua nesse trabalho?
Não tem muito isso. A gente é observador. Sou fascinada pela história dos outros, penso sempre “o que tem naquela sacola? Aquela pessoa está indo pra onde?”. Isso é muito interessante para mim, e para o Maurício também. Mas a gente não tem uma combinação em relação ao que vamos levar. Ele vai com o espírito dele, e eu com o meu. A gente combina muito ali no set, no lugar de todo mundo. Até porque, o Maurício é muito calado em relação ao trabalho. É capaz de chegar em casa depois de 14 horas de trabalho, eu perguntar como foi e ele responder: “Bom”.
Já vi você dizer que quando queria saber algo sobre a novela perguntava à Marieta…
Exato. No “Tapas & Beijos”, à Fernanda (Torres). É sempre assim que sei das coisas. Ele não tem muito isso de “Andréa, deixa eu te contar… “. Acho que isso dá uma saúde boa na relação. A gente gosta de trabalhar junto, mas não é um grupo. Até porque, seria esquisito estar com os outros já tendo conversado coisas em casa, a gente já combinado. Meio covarde. Como estamos juntos há 27 anos, precisamos da chegada dos outros para oxigenar. Precisa mexer a terra que está ajeitadinha assim.
Você tem dito que está apaixonada pela novela. Por que exatamente?
É muito contemporânea. A Lícia e seus colaboradores têm habilidade de mexer com temas espinhosos. Nas novelas anteriores dela, mesmo quando não conseguia assistir com assiduidade, parava sempre que ouvia o texto. Gostava da maneira que as personagens falavam. É uma carpintaria, um jeito de escrever legal.
Acho incrível a história do protagonista (Cauã). Fala de um não lugar, de uma total falta de oportunidade, coisas que a gente tem lidado de maneira aguda e, mais ainda, mais por causa da pandemia. Tem uma coisa de “crime e castigo” interessante, do cara que comete os erros sem exatamente querer cometê-los. Ele não é do mal, é uma pessoa que está perdida, tentando. Gosto das personagens, acho que têm um caminho interessante.
São densas, profundas…
E precárias, erradas, todas têm furos e falhas. As personagens mais interessantes são as mais esquisitas. O personagem do Marco Ricca disse uma frase que achei linda: “Gente perfeita é muito chato”. E verdade! É tudo que penso. Além do texto da Lícia, tem a direção que faz um sol sobre aquilo.
O Maurício (o marido da atriz assina assina a direção artística da novela) e os diretores dele, muito experientes, trabalharam em busca de uma linguagem para mostrar as personagens. Conheço o trabalho do Maurício, a gente é casado há 27 anos, sou admiradora profunda. Mas acho incrível como, de um take para o outro, tem uma imagem provocante. A câmera não se exibe como narradora, parece que você está ali num canto da sala olhando aquela cena. De repente, muda para o outro canto…
É interessante e fruto de um trabalho imenso. Além disso, tem toda a equipe de criação que trabalha com o Maurício há 20 anos. Como diz Bruno Henrique (jogador do Flamengo): “É outro patamar” (risos). Tudo é afetuoso, porque todo mundo tem seu lugar de colocação. Maurício ouve muito bem, tem uma escuta meio extraordinária.
Como é seu estilo de trabalhar? Fica “possuída” pela personagem?
Acredito muito no jogo, no brincar ali em cena. Não transo muito uma possessão da personagem. Rejeito esse lugar da introspecção, do “estou mergulhada na personagem”. Gosto de conversar, de estar com as pessoas naquela hora, saber o que fizeram ontem, comentar sobre o Vasco, o Flamengo. Preciso estar conectada com quem está ali, tenho que saber o nome de todos da equipe, abraçar. Isso que faz sentido para o meu trabalho.
Quando vejo alguém dizer “vou viajar sozinho porque vou fazer papel difícil e preciso ficar um tempo fora”, não consigo compreender. Como não voltar pra casa no fim do trabalho e ver minhas coisas, meus filhos, meu cara? Como não nadar no dia seguinte, encontrar o pessoal da natação ou fazer aula de ginástica? Não vivo sem esse lugar da vida ordinária, ele é muito importante pra mim. Adoro o papo ordinário. Aí, o diretor chama pra gravar e, beleza, vou lá.
Eu nem deveria dizer isso porque, talvez, achem que sou uma atriz desconcentrada ou que não estuda. Mas tudo bem…
É o seu processo…
Na verdade, até essa palavra processo me incomoda. Não tem processo, a vida não tem processo, nada combinado vai dar certo com certeza.
Com “Antígona”, que você fez no teatro, também era assim?
Ah, era. Eu e Amir (Haddad, diretor do espetáculo) trabalhamos durante um ano, nos reunimos muitas vezes, estudei muito. Adoro estudar, esse momento de preparação acadêmica, livros, cadernos, críticas. Agora, na hora de ir, isso fica lá. Não pode levar cola para o vestibular. O que ficou ficou, o que esqueci teve algum motivo. Ou depois vou lá e recupero.
Estreamos a peça, foi meu primeiro monólogo, eu estava muito nervosa. O Amir foi muito paciente e também muito duro comigo. Mas eu o amo, é meu malvado preferido (risos). Eu chegava no teatro duas horas e meia antes todo dia e passava a peça toda. Ele ficava me olhando e um dia disse: “Por que você faz isso? Quando a plateia chega, você não tem mais uma novidade para o público, já fez a peça, já está cansada. Você não deve fazer isso”.
Eu dizia: “Mas tem aquele momento de chorar…”. E Amir: “Ah, não chora nada! Se der vontade de chorar no meio da peça, mesmo que não tenhar nada a ver, você chora”. Aí eu disse que não queria errar o texto, e ele falou: “Ah, é o seguinte: você só vai estar livre quando errar. Só vai fazer de verdade o teatro que combinamos aqui quando você errar e não esconder”.
Eu fiquei com aquela praga, né? Disse: “Para me me rogar praga, não vou errar nunca” (risos). Até que que errei lidamente e foi maravilhoso. Fui salva por uma pessoa da equipe que soprou o texto para mim.
E te deu um certo aval para seguir nessa maneira mais relaxada que você tem de encarar o ofício, não?
Acho que fiquei mais rebelde ainda (risos).
Por falar em rebeldia, é incrível pensar na Zelda Scott, de “Armação Ilimitada”, uma heroína fora dos padrões, de cabelo curtinho…
Eu era completamente fora dos padrões de belezinha para aqueles anos 1980, para ser a gata de dois surfistas que eram os gatos da hora. Era improvável que eu ficasse com aquele papel. Aconteceu. Ela transava com os dois. E todos transam com quem queriam.
Isso hoje, no horário nobre da TV, seria possível? Ela saía do quarto de um para pegar uma água e o outro já falava “vem Zel, passa aqui”. Tudo com uma dignidade, uma elegância. Era uma questão de afeto, de tesão, de amor dentro do mistério louco que é essa coisa carnal.
Não havia problematização em cima desse triângulo amoroso, né? E nem uma noção dos tabus que estavam sendo quebrados ali…
Não lembro de isso ser uma questão ou uma discussão. Nunca ninguém chegou pra mim e falou “nossa, que difícil”. Ninguém nunca torceu o nariz, pelo contrário, era: “Aí, hein, tá pegando dois gatos! Era tão natural os três ali que o público torcia. Quando entrava um terceiro homem para ficar com a Zelda, eles não gostavam, “não, larga, ela é dos dois”. Aí, em “Rainha da sucata” eu casei com três irmãos.
Acho que cada grãozinho desse desemboca nessa Rebeca, que fala as coisas e não fica se vitimizando numa autopiedade. A Rebeca é uma mulher solar, uma amiga que a gente gostaria de ter. Assim como a Ilana (Mariana Lima). Na novela, as personagens todas têm esse lugar de erro e admiração, porque a identificação é pura, honesta.
O Felipe (Gabriel Leone), homem bem mais novo com quem a Rebeca se envolve, é de uma geração mais livre da obrigatoriedade de uma masculinidade opressora, que abafa as emoções para sustentar a ideia torta de ser macho. Acha que ele mexe com ela exatamente por causa disso? Você vê nos seus filhos (ela é mãe de Francisco, de 24 anos, e de José, de 20, além de Rosa, de 23) uma desconstrução dessa masculinidade que faz mal?
Ah, mexe. A aproximação de uma figura livre, sincera, solta, um cara que cuida afetivamente sem ser idiota… Não é o homem babador, mas que dá o braço, está do lado, nem a frente, nem atrás. Eu vejo, sim. O namorado da minha filha é incrível, a relação deles é incrível, as duas namoradas dos meus filhos também. Olho e falo: “Que avanço!”. Talve eu veja isso neles por que eu batalhei por isso, Maurício também. São filhos que tiveram acesso a esse tipo de provocação. Mas eu acho que a juventude vai fazer um gol de placa, vai arrasar, mudar muita coisa.
Eles estão bem? Ainda moram com você?
Rosa não mora mais comigo, José, sim, Chico está fazendo faculdade em Los Angeles, e Antonio, meu enteado, estudou fora e agora está de volta. Acho adolescente uma coisa muito emocionante. Sempre falavam “você vai ver quando ficarem adolescentes”. E eu pensava: “O que vou ver? Vai virar um monstro?”. Mas eu ficava muito comovida. Acho que a adolescência tem uma gressividade desagradável, sim, de ficar esticando a corda, mas vejo uma beleza imensa, porque a pessoa não sabe nada…
Em uma época da sua vida, você teve que recorrer aos Narcóticos Anônimos. Como foi isso e como conduziu o assunto drogas com os seus filhos?
Falei tudo, cedo. Quando percebi que eles notavam que existia alguma coisa, me aproximei do papo. Não ia deixar passar porque queria que eles tivesse uma informação de mim, que já passei por isso e conheço todas. Frequento o NA, voltei há três anos. Me ajudou muito, e minha análise também tratou muito desse assunto.
Cada um vai conhecer o seu limite, o que é bom, o que não é, o que estraga, chateia. Eu sou muito exagerada, voraz, sempre fui. Quero chupar a vida até o caroço, quero tudo que tiver, quero viver muito. Isso é bom por um lado e às vezes me atrapalha. No caso do álcool, começou a ficar pesado para mim, meu dia seguinte comçeou a ficar desinsteressante, chato, pesado.
Você está bebendo atualmente?
Não, nada. A primeia vez que fui para o NA, tinha 20 e poucos anos, ainda era Toxicômanos Anônimos. Fiquei vários anos, e muitas coisas aconteceram, meu irmão morreu, nossa… Foi muito difícil. A minha avó também morreu, tive duas pancadas. Aí, voltei (a beber) socialmente, normal como todo mundo, mas com a minha voracidade não dá…
Estou muito bem, fico muito bem. Me sinto meio Obelix, caí no caldeirão, sabe? Não preciso de nada. Fico legal em qualquer situação, nada me incomoda, não tenho problema nenhum. Vou a qualquer lugar, sou a primeira a entrar na pista de dança e a última a sair. A minha questão é só minha, não uso para valorar nem criticar nada nem ninguém, nem com os meus filhos assim. Eles sabem, o que digo a eles é o que eu sei, mas não tipo “olha como foi com a mamãe”. Deus me livre! As vidas são diferentes, né?
Como a morte do seu irmão marcou a sua vida?
O Artur era a minha vida, mas era muito mais a vida da minha mãe. Só quando se tem filhos a gente entende a dimensão disso. Desejei demais, implorava esse irmão, não gostava de ser filha única. Ele veio quando eu tinha 11 anos, eu ajuda minha mãe a cuidar. Ele teve um aneurisma de repente. Foi quando eu aprendi o verbo estar.
A gente está aqui agora, pode levantar e… Não há garantias, nada é seguro. Comecei a trabalhar dentro de mim a finitude na carne. Fiquei atenta. Ele está comigo até hoje, não sai de mim, é meu irmão, tio dos meus filhos. Eles sabem que é uma dor imensa para mim e também para a minha mãe. Nunca haverá um apaziguamento desse sofrimento.
Falemos de coisa boa. O que significa reabrir o Teatro Poeira depois de quase dois anos com uma exposição que vai celebrar os 17 anos do espaço?
Antes da pandemia, a gente tinha a ideia de elebrar os 15 anos, porque a gente nunca se comemorou. O Aderbal tinha feito um estudo para fazer uma exposição no Poeirinha e continuar com o Poeira como palco. Veio a pandemia, Aderbal ficou doente e vimos que ia ser difícil reabrir logo. Tivemos a ideia de fazer uma exposição maior, nos dois teatros. Reabrir o Poeira assim seria a maneira mais interessante de abraçar o público, mostrar a história, o que foi feito aqui, as palavras e as pessoas que passaram.
Chamamos a Bia Lessa, que a ideia genial de mostrar como o reflexo da vida vai para o teatro. Vamos abrir dia 7 de janeiro. Eu e Marieta também chegamos a conclusão de que a gente não poderia reabrir o teatro depois com uma peça convidada. Então, a gente vai fazer uma peça eu e ela, com o Kike (Enrique Diaz) dirigindo. Um espetáculo, que a gente não sabe ainda qual é, para estrear em abril e lotar essa casa. Às vezes, as pessoas falam: “Se tudo der errado, a gente vai embora para não sei onde”. Olho para Marieta e falo: A gente não vai embora, não, tá?”. Por que esse teatro é uma raiz e a gente está fincada.
Fonte: O Globo
Créditos: Polêmica Paraíba