Privilégio : Eu vi o maior de todos (Parte I)

Bruno Filho

Começo hoje com a permissão dos senhores e senhoras a escrever em partes sobre personagens históricos que vi ao longo da minha vida e que me marcaram a ponto de nunca mais serem esquecidos por este jornalista que antes de tudo agradece por ter nascido na década das maiores transformações no mundo.

Para falar de meu personagem inicial, sou obrigado a lembrar das madrugadas sem dormir e da imagem em preto e branco de uma televisão repleta de chuviscos, sem a nitidez ideal e que se arriscava a reproduzir eventos esportivos dos mais distantes locais num grande esforço para a época, quando os satélites eram raros.

O ano 1971. Final de semana se aproximando e a expectativa para a entrada no ringue de Cassius Marcellus Clay Jr, vou chamá-lo dessa maneira pois não gosto de seu nome muçulmano. Um misto de lutador insuperável, contestador, tagarela e desafiador político.

Eu, morando num país no auge da ditadura militar escutava nas palavras do lutador o que não poderia falar, medo da guerra fria, quando exército caminhava lado a lado com a juventude e o fantasma do quartel assustava os rapazes que queriam mesmo era estudar, passear e se divertir.

Ele enfrentou os maiorais do Tio Sam e simplesmente não foi para o Vietnã, alegando que nunca um vietcongue havia lhe feito nenhum mal, então porque deveria ir para lá matá-los ? Aquilo soava como música nos meus ouvidos assombrados com a frieza dos militares.

Voltando a luta. Ele sobe ao tablado tarde da madrugada para enfrentar outro americano de estatura menor e muito mais comedido chamado Joe Frazier. Nova York foi a cidade escolhida exatamente o “Madison Square Garden” absolutamente lotado para o evento.

Nunca mais vou me esquecer da chegada de ambos para a luta. Eu estava ao lado de meu irmão Chico na sala de casa quando foi anunciado o cartel dele. Eram 31 lutas e ainda estava invicto. Tinha sido medalha de ouro nas Olímpiadas de Roma em 1960.

Foram 15 rounds técnicamente perfeitos, uma luta considerada a Luta do Século pela sua qualidade e terminou com a derrota de meu grande ídolo. Numa decisão justa dos jurados perdeu por pontos para Frazier que lhe roubava assim o cinturão de ouro.

Inconformado com o resultado e impelido por minha mãe pelo adiantado da hora fui dormir e naquela noite percebi que todos somos humanos. A derrota é possível, mesmo que inesperada. Foi um sentimento de perda como se eu tivesse levado a maioria dos socos desferidos contra Cassius.

Sua carreira prosseguiu, recuperou o cinturão algumas vezes, protagonizou outras dezenas de declarações bombásticas, e no seu segundo maior combate da história venceu George Foreman, o homem das churrasqueiras, no Zaire em 1974 quando o ato principal foi erguer o moral da combalida Africa Negra.

Esse gigante que nunca deu mostras de fraqueza e que nunca abaixou seu queixo para ninguém em 1980 foi vencido pela doença. Diagnosticado com Parkinson, fragilizou-se, e hoje ao completar 71 anos, mesmo tentando muito transformou-se num personagem antonimo daquilo que era.

Considerado o desportista do seculo 20, ampara-se para caminhar, tem dificuldades de falar, luta desesperadamente para não ser alvo de chacotas, numa inequivoca demonstração de que super-homens não existem mesmo, são sempre fruto da imaginação.

Bem, não vale para mim. Continuo com Cassius Clay na minha memória, afinal ele me mostrou que palavras e atos podem ser maiores e mais eficientes do que canhões. Mostrou que quando se quer se consegue, e mostrou acima de tudo o que é ter amor por sua raça.

Bruno Filho, jornalista e radialista, salve Cassius Clay, o “bailarino” inesquecível que completa aniversário.