Zenite Gonzaga Mota, de 71 anos, começou a sentir os sintomas da infecção por covid-19 no início de fevereiro último. Após uma semana tratando o quadro leve de casa, foi levada pela filha, Alzenira, para uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA) de Itacoatiara, no Amazonas, a 270 quilômetros da capital Manaus. Dias depois, acabaria virando ‘cobaia’ de um estudo denunciado como ilegal, financiado por uma rede privada para testar a proxalutamida, uma droga experimental estudada para aplicação em pacientes com alguns tipos de câncer, como o de próstata, pois bloqueia a ação de hormônios masculinos. A promessa é que iria curar a covid-19 de Zenite. O mais grave: nem ela e nem sua família chegou a saber que faziam parte de um experimento mal sucedido, e que coloca o Brasil no centro do que pode ser um dos maiores escândalos da ciência.
Zenite tinha arritmia, apresentava uma queda na saturação de oxigênio e foi diagnosticada com uma infecção no pulmão. Por isso, o médico recomendou a internação por cinco dias no Hospital Regional José Mendes, na mesma cidade, para acompanhamento e tratamento com antibióticos. Ela entrou no hospital andando, e, 30 dias depois, sua família estava lidando com sua morte. O uso de proxalutamida pode ter acelerado sua morte. O experimento foi patrocinado pelo grupo Samel, uma rede de hospitais e planos de saúde da região. No início desta semana, o episódio que culminou no óbito de ao menos outros 200 pacientes, segundo dados da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP), foi descrito pela UNESCO como o que poderia ser um dos “mais graves e sérios episódios de infração ética” e “violação dos direitos humanos” de pacientes na história da América Latina.
Quem relata a história de Zenite é Alessandra Mota, 40 anos, sobrinha que a acompanhou durante o mês de internação em Itacoatiara. “Minha tia chegou bem ao hospital, onde deu entrada no dia 6 de fevereiro. Ela estava se alimentando sozinha e indo ao banheiro sem precisar de ajuda. Às vezes inalava um pouco de oxigênio no balão, mas nada anormal naquele contexto”, conta.
Dois dias após a entrada, o Grupo Samel chegou a Itacoatiara. A empresa manauara de assistência médica e hospitalar anunciou, por meio do presidente Luiz Alberto Nicolau, que a cidade amazonense seria a primeira a receber os “benefícios de um medicamento americano de tratamento de câncer que tem um resultado excepcional contra a covid-19″. O remédio é a proxalutamida, que não tem registro no Brasil e não é usada em nenhum tratamento no país. Segundo Nicolau, a pedido do prefeito Mário Abrahim (PSC), a Samel iria aplicar o tratamento em todos os pacientes de covid-19 internados nos hospitais municipais de Itacoatiara com base em um estudo coordenado pelo médico Flávio Cadegiani, com “a expectativa de que faça uma diferença muito grande para a cidade”, segundo divulgado em vídeos nas redes sociais da empresa.
Zenite começou a tomar três cápsulas de proxalutamida por dia em 11 de fevereiro, de acordo com prontuário mostrado por sua sobrinha. No mesmo tratamento, também inalava doses diárias de hidroxicloroquina e tomava ivermectina, medicamentos comprovadamente ineficazes no combate ao novo coronavírus. Alessandra conta que recebia o medicamento em envelopes e que os familiares eram responsáveis por dar a droga aos pacientes. Durante o tratamento, segundo ela, não havia acompanhamento nenhum da equipe médica, nem para averiguar a quantidade e a forma como o paciente recebia o remédio, e muito menos para anotar algum resultado.
“Assim que ela começou a medicação, passou a sentir muita falta de ar”, atesta a sobrinha. Ela conta que também viu Zenite chegar a 170 batimentos cardíacos por minuto, além de passar a apresentar sangramento na urina, hematomas no pé e diarreia por semanas. “Não nos foi explicado o que era o remédio e nem que era um estudo. Só nos passaram um termo que assinamos, porque confiamos nos médicos. As pessoas aqui do interior são humildes, não têm conhecimento e estavam desesperadas”, diz Alessandra.
A família conta que tentou durante 30 dias a transferência da paciente para um hospital de Manaus, mas que o pedido foi negado por diversas vezes pela direção do hospital de Itacoatiara. Quando finalmente conseguiram, Zenite foi levada em “estado debilitado” ao Hospital Delphina Aziz, em Manaus, onde faleceu no dia 13 de março. “Foi em Manaus que começamos a desconfiar. Porque, quando falamos para a médica de lá sobre o tratamento com proxalutamida, ela teve uma reação corporal muito desconfortável”, relata a sobrinha.
Zenite não foi a única cobaia do que parece uma pesquisa clandestina com a proxalutamida. A CONEP, órgão do Ministério da Saúde que avalia protocolos de pesquisa envolvendo seres humanos, concluiu uma investigação onde aponta as irregularidades do estudo coordenado pelo médico Flávio Cadegiani. O órgão chegou a autorizar o estudo com a proxalutamida no começo do ano, mas ressalta que o conduzido no Amazonas envolveu mais pessoas do que havia sido originalmente aprovado (645 participantes, quando o número permitido era 294) e foi realizado com “pacientes em terapia intensiva gravemente enfermos”, o que tampouco havia sido aprovado.
“Pelos fatos e fundamentos apresentados, verificou-se que há diversas contradições nos documentos apresentados à CONEP, o que caracteriza indícios de irregularidade na condução da pesquisa, bem como transgressões das normas vigentes sobre ética em pesquisa envolvendo seres humanos, além da inobservância das boas práticas clínicas na condução do ensaio clínico”, diz o documento assinado pelo coordenador da Comissão, Jorge Venâncio, no dia 3 de setembro. A Agência Nacional de Segurança Sanitária (Anvisa) suspendeu a autorização de importação e uso de proxalutamida no Brasil em 2 de setembro.
Prontuário de Zenite, no dia 11 de fevereiro, com azitromicina e proxalutamida, entre outros medicamentos.
Além de Itacoatiara, a CONEP recebeu denúncias do mesmo estudo em Manaus, Maués e Parintins, em Amazonas, Porto Alegre e Gramado, no Rio Grande do Sul, e Chapecó, em Santa Catarina. Nenhum deles foi autorizado pela Comissão. O caso se une ao de operadoras de saúde como a Prevent Senior e Hapvida, cujos procedimentos questionáveis durante a pandemia chamaram a atenção da CPI da Pandemia e da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS).
No documento de alerta dos Pesquisadores da Rede Latino-americana e Caribenha de Bioética (Redbioética-UNESCO), foi cobrada urgência para apurar o episódio. “É urgente que, se comprovadas as irregularidades, sejam investigados e responsabilizados ética e legalmente todos os envolvidos, incluindo equipes de pesquisa, bem como instituições responsáveis e patrocinadores, nacionais e estrangeiros”, diz o texto.
Outro lado
O médico responsável pelo estudo publicou uma nota em sua defesa, onde alega que as declarações dos pesquisadores da Unesco estão “baseadas em premissas falsas”. Flávio Cadegiani diz que “nenhum evento adverso sério decorreu da medicação em teste” e que a CONEP tentou invalidar a pesquisa “após a demonstração de interesse do presidente Jair Bolsonaro pela proxalutamida”, portanto, que a denúncia do órgão de saúde teria motivações políticas. Bolsonaro citou o fármaco como possível novo medicamento eficaz contra a covid-19 no dia 18 de julho, quando recebeu alta após tratamento de obstrução intestinal em São Paulo. “Tem uma coisa que eu acompanho há algum tempo, e nós temos que estudar aqui no Brasil. Chama-se proxalutamida. Já tem uns três meses que isso aí… Não tá no mercado, é uma droga ainda em estudo”, disse na época. No entanto, mesmo o presidente, acostumado a dar declarações negacionistas, ressaltou que “isso existe no Brasil de forma não ainda comprovada cientificamente”.
Cadegiani também ressalta que a CONEP aprovou outros 25 estudos com o uso do mesmo medicamento. “Afinal, se houvesse qualquer mínima suspeita de que a proxalutamida provocou a morte de alguém, a CONEP jamais teria aprovado absolutamente qualquer outro estudo com a droga”, argumenta. Por fim, o médico afirma que foram feitas representações junto ao Ministério da Saúde, Conselho Nacional da Saúde, Controladoria Geral da União e Procuradoria-Geral da República “para as devidas apurações visando resguardar os direitos do pesquisador”. Nesta quarta-feira, o médico destacava em suas redes sociais que a nota da UNESCO sobre o assunto não estava mais acessível. “Nota da Unesco contra nossa pesquisa (baseada em falácias da CONEP) que deu o maior auê na mídia brasileira: retirada do ar. É tudo o que vocês precisam saber para hoje”, escreveu, acrescentando que está “à base de remédio”.
No mesmo sentido vai a defesa de Luiz Alberto Nicolau, presidente do Grupo Samel, que afirma que os óbitos são ligados às pessoas do estudo que receberam placebo, ainda que a CONEP diga que isso não foi provado pela empresa. “Nós servimos, com muito orgulho, de local de uso para provar a eficácia (como foi provada), da proxalutamida. Inclusive, o vazamento de informações sigilosas já são motivo de processo da nossa parte”, comentou Nicolau, além de dizer que as denúncias feitas são questão de “politicagem”.
A CONEP pediu à Procuradoria Geral da República que investigue as condições em que a pesquisa clandestina foi aplicada em vários locais do país. Já existe também uma investigação em curso da Procuradoria do Rio Grande do Sul. A família de Zenite ingressou com uma ação judicial contra o Grupo Samel e a Prefeitura de Itacoatiara pela morte da idosa devido ao “tratamento irregular”, e cobra esclarecimentos. “Eu vi minha tia chegando no hospital com a esperança de que melhoraria em cinco dias. Só na enfermaria em que ela ficou internada, acompanhei muitas pessoas morrendo depois de receberem esse tratamento. Foi um campo de terror, e tenho para mim que não só pela covid-19. O que queremos é que seja investigado”, diz a sobrinha.
Fonte: EL País
Créditos: EL País