O depoimento de Frances Haugen, ex-funcionária do Facebook que prestou depoimento ao Senado americano na terça-feira, pode parecer “assustador”, mas, para especialistas, vai além disso: seu relato “joga lenha na fogueira” sobre o papel das plataformas na sociedade e mostra que é preciso um amplo debate sobre a questão.
O testemunho também aponta que é possível pensar caminhos para uso das redes sociais de modo mais transparente, legítimo e democrático, especialmente em relação à moderação de conteúdo e seus próprios algoritmos. É o que diz Christian Perrone, coordenador de Direito e Tecnologia do ITS Rio.
Ele defende uma “autorregulação regulada”, um sistema que prevê a possibilidade de as plataformas se autorregularem por meio da comprovação e participação pública de autoridades governamentais, da sociedade civil e uma série de atores multissetoriais.
O que mais chamou atenção no depoimento da delatora?
Acho que primeiro é importante entender que ela é um whistleblower (delatora) e entender de onde ela vem. Acho interessante que ela faz comparações entre diversas outras redes sociais, e ela comenta justamente que pode ser que existam soluções.
Pode ser que parte dos estudos (do Facebook e que foram vazados para a mídia americana) visavam a entender os fenômenos que se passavam na plataforma e tentar encontrar formas de resolver esse fenômeno. Existem caminhos e buscas para encontrar soluções.
Uma das coisas mais complexas de discutir desinformação e como proteger as crianças e adolescentes no ambiente digital é que muitas vezes se chega a uma visão de que não é possível, de que ou você utiliza as redes sociais ou você protege as crianças.
E ela dá a entender que existem potenciais caminhos, por mais que haja um pouco mais de pessimismo frente ao Facebook. Existem soluções para fenômenos extremamente complexos cheios de nuances como esses. A grande questão é como vamos estruturá-los.
Ela também dá a entender que esse problema talvez seja maior no Facebook e que talvez as escolhas da rede social não sejam as melhores, mas mostra que a discussão vai além de uma plataforma em específico.
Talvez seja importante ver que esse é o momento que devemos falar de uma autorregulação regulada. As plataformas têm que estar de mão dadas com outros atores, seja o governo, sociedade civil, a academia, seja o corpo técnico, para realmente encontrar soluções
O depoimento aumenta a pressão sobre o Facebook e as demais big techs de forma pragmática?
Acho que é exagero dizer que estamos no mesmo momento histórico que as empresas de tabaco (como a Frances Haugen disse), mas talvez o elemento mais primordial foi ter jogado um pouco mais de lenha na fogueira sobre a discussão do papel das plataformas na nossa sociedade.
Falar sobre qual é o papel da regulação frente a essas plataformas e como a gente vai criar mecanismos para a participação e tomada de decisão que sejam transparentes e gerem mais legitimidade na decisão das plataformas com relação à moderação de conteúdo ou seus próprios algoritmos.
E acredito que isso (o depoimento) deve gerar uma busca por maior transparência e legitimidade das plataformas, ou mecanismos para que isso aconteça.
Quais legislações já existem no mundo no que se refere aos direitos das crianças no ambiente digital?
Uma grande parte das principais discussões sobre regulação da internet começaram em duas áreas: ou questões relacionadas a pornografia e liberdade sexual ou questões relacionadas a crianças. Geralmente são os pontapés iniciais de toda discussão.
As primeiras leis focavam justamente na responsabilidade frente a proteção de crianças, sobre imagens de crianças e como a situação do conteúdo poderia impactar as crianças. Uma das primeiras leis foi a COPPA.
Nos Estados Unidos, as primeiras discussões eram sobre como tratar a entrada de crianças e como tratar dados de crianças até 13 anos. Até 13 anos você precisava ter consentimento dos pais, por exemplo.
Depois, na Europa, a discussão veio mais voltada para questões de proteção de dados — principalmente pela GDPR que vai no sentido de, em vez de pensar no consentimento dos pais e de ter os dados das crianças tratados —, há uma obrigação das plataformas de pensar qual é o melhor interesse do menor (juridicamente).
Agora estamos numa fase de como o design das plataformas deve ser para alcançar esses objetivos de maior proteção, tanto dos dados quanto das crianças em situações contra abuso sexual, bullying, violência. O Reino Unido trouxe o Age Appropriate Design.
(Por isso), acredito na autorregulação regulada, que é a participação dos diversos atores da sociedade, em conjunto com as plataformas, para encontrar as melhores soluções. Temos que pensar (sobre os direitos das crianças) de uma maneira multissetorial, multifocal e multimatéria. Não eixste uma única bala de prata para resolver todos esses problemas.
E quanto ao monopólio das big techs?
Existe uma grande discussão sobre o quanto as leis de monopólio e antitruste são úteis e se aplicam às plataformas.
Muitas das big techs podem dizer que não têm uma posição monopolística. É claro que o WhatsApp possui milhões de usuários, mas ele pode dizer: “Olha, ontem caiu o Whatsapp, caíram as minhas principais plataformas e rapidamente as pessoas estavam baixando outras redes como Signal ou Telegram”.
E quanto ao monopólio das big techs?
Existe uma grande discussão sobre o quanto as leis de monopólio e antitruste são úteis e se aplicam às plataformas.
Muitas das big techs podem dizer que não têm uma posição monopolística. É claro que o WhatsApp possui milhões de usuários, mas ele pode dizer: “Olha, ontem caiu o Whatsapp, caíram as minhas principais plataformas e rapidamente as pessoas estavam baixando outras redes como Signal ou Telegram”.
E aí as plataformas podem dizer que não estão aumentando o custo para o consumidor. O Facebook pode dizer que não cobra nada deles, então como ele está abusando do mercado para prejudicar? Isso não quer dizer que não seja intransponível, mas isso depende de uma reformulação das principais formas de pensar sobre competição.
O fato de a Amazon, por exemplo, utilizar dados que ela possui sobre vendas dos produtos e então lançar produtos que são top de vendas (em detrimento de outros). Será que isso é uma estratégia de anticompetição para empresas que estão participando do e-commerce da Amazon? A discussão sobre competição é bastante ampla e difícil de ser feita.
Depende de qual empresa, qual plataforma. Não existe uma resposta pronta, existe uma série de discussões internacionais e que afetam o Brasil nesse tema de competição e antitruste. E por trás de tudo isso ainda existe uma questão geopolítica.
As empresas chinesas como WeChat e TikTok vem ganhando mercado internacional, e isso impacta também as empresas ocidentais. Será que faz sentido falar de anticompetição sendo que vai ter uma competição enorme chinesa e lá eles não estão debatendo esse mecanismo de anticompetição?
Ainda existem muitas mais perguntas do que respostas. Tem uma série de elementos sendo discutidos, e provavelmente vai levar alguns anos para a gente entender.
Fonte: O Globo
Créditos: Polêmica Paraíba