Basta jogar poucas palavras em ferramentas de busca na internet para entrar em contato com o inusitado mundo dos “vapers”. São centenas de publicações, fóruns, blogs, grupos e vídeos em que os usuários e defensores do cigarro eletrônico falam abertamente sobre aparelhos, marcas e saborizantes. Tudo, por meio de uma linguagem própria, com termos tão específicos que tornam o conteúdo até mesmo inacessível para quem lê pela primeira vez ou nunca ouviu falar sobre o “vape”.
A “comunidade online” do vapor é tão pulverizada que nem parece tratar do uso de um produto cuja comercialização, importação e propaganda são proibidas no Brasil. O consumo, por outro lado, é permitido.
De maneira geral, os usuários abordam três tópicos nas publicações: a troca e a venda (ilegal) dos “vapes”, o compartilhamento de dúvidas e opiniões sobre centenas de modelos. Para completar, fazem depoimentos e comentários que exaltam os novos dispositivos como “alternativa ao cigarro tradicional”, o principal argumento dos fabricantes dos equipamentos em nível global.
Entre eles, as grandes corporações do setor de tabaco, como Philip Morris Internacional e a British American Tobacco (antiga Souza Cruz, no Brasil), que afirmam que os Dispositivos Eletrônicos para Fumar (Defs) são menos prejudiciais à saúde do que o cigarro comburente, aquele que essas empresas vendem há décadas e que continuam sendo a sua fonte principal de lucro. Outras dezenas de marcas fabricantes do “vape” anunciam que o produto pode auxiliar fumantes a parar de fumar, reduzindo danos.
A frase “O cigarro eletrônico causa 95% menos danos do que o cigarro tradicional” se tornou um jargão entre os vapers. Apesar de muitas vezes ser usada sem o devido crédito, a afirmação refere-se a estudos da Public Health England (PHE), departamento de Saúde da Inglaterra, que há anos defende o posicionamento de forma isolada na comunidade científica internacional.
O vapor dos produtos recarregáveis com refis líquidos ou juices que, na maioria, contém nicotina e saborizantes, seria menos nocivo por não causar a combustão que ocorre durante a queima do cigarro tradicional, processo responsável pela produção dos altos níveis de substâncias químicas que fazem mal a saúde.
O argumento de que o dano é menor também é usado para defender o tabaco aquecido, dispositivo que, a partir de uma lâmina eletrônica, aquece uma vareta de tabaco e libera um vapor com sabor.
Na contramão do que dizem os “vapers” e a indústria, estão instituições de saúde brasileiras e internacionais que exigem cautela e avaliam que ainda não há estudos contundentes para sustentar o argumento, como mostra reportagem publicada pelo Joio. Esse mesmo entendimento fundamenta a proibição determinada pela Anvisa há mais de uma década (Resolução DC nº 46, de 28 de agosto de 2009).
Em março deste ano, o Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos Estados Unidos (United States Department of Health and Human Services, em inglês) publicou um relatório no qual endossou que “atualmente há evidências inadequadas para concluir que os cigarros eletrônicos, em geral, aumentam a cessação do tabagismo”.
No Brasil, no entanto, há uma ameaça, já que, após forte pressão da indústria, a questão foi incluída na Agenda Regulatória 2017-2020 da Anvisa. Em 2019, foram realizadas duas audiências públicas sobre o tema, em que foram entregues documentos classificados como evidências técnico-científicas por setores contrários e favoráveis à proibição. O material será analisado por um grupo de pesquisadores externos e resultará na elaboração de um relatório de Análise do Impacto Regulatório.
A Anvisa abriu uma consulta pública para selecionar os temas que serão abordados no período e os “vapers” se organizaram para tentar garantir que o debate acerca dos cigarros eletrônicos não ficasse de fora. O site Vapor Aqui, por exemplo, criado por Alexandre Hazard, convocou os usuários para participar. Presente em todas as redes sociais, site é uma das principais referências no mundo “vape” no Brasil.
O jornalista afirma ter parado de fumar em 2015 graças ao “vaping” e se apresenta como especialista em “redução de danos” do tabaco. Seu canal no Youtube possui pouco mais de 500 mil visualizações e cerca de 130 vídeos, entre eles, análises de juices e equipamentos e tutoriais, assim como registros de participações em palestras sobre redução de danos.
Por meio da Twitch, uma plataforma online para transmissões ao vivo, realiza o “Boteco Vape”, todas as sextas. O podcast “Vá Por Aqui” é a aposta mais recente e conta com chamadas para acesso ao Prime Gaming, da Amazon, e ao Twitch, serviço de jogos onde os episódios são gravados.
Apesar de endossar em alguns vídeos e comentários que nenhum produto é 100% seguro e a melhor opção é sempre parar de fumar, Hazard aparece frequentemente usando dispositivos nos vídeos e exaltando-os como alternativa ao cigarro tradicional.
Ainda assim, o Vapor Aqui alega não contrariar a legislação por se considerar um projeto jornalístico e informativo.Em vídeo publicado no Instagram em 9 de fevereiro, após a conta do Vapor Aqui ter sido bloqueada devido a denúncias de conteúdo inapropriado, Hazard afirmou:
“Citei a RDC 46/2009 que diz que é proibida a propaganda e importação, mas falar sobre, ter ou usar o cigarro eletrônico. Isso não é proibido. E a nossa página faz isso: informa as pessoas a respeito do vape”, disse. Adriana Carvalho, advogada da organização ACT Promoção da Saúde, vê fragilidade no argumento de Hazard. “É um site promocional com vários anúncios de publicidades dos produtos. Ele está fazendo publicidade dos DEFs, o que é vedado pela lei”, diz.
A reportagem não conseguiu localizar Hazard.
Influencers para todos os gostos
A maioria dos perfis não vende diretamente os aparelhos, mas faz análises com longos vídeos vaporando, mostrando os produtos, e parcerias de divulgação das contas de lojas que vendem os dispositivos ou os e-liquids.
São perfis que promovem produtos indiretamente — os interessados precisam apenas clicar na opção “maior de 18 anos” para acessar o catálogo dos sites parceiros.
O @VapersBrazil, perfil do vaper Luiz Otávio, possui mais de 26 mil seguidores somente no Instagram. No Youtube, possui mais de 52 mil inscritos, 433 vídeos enviados, incluindo tutoriais para iniciantes. Apesar afirmar na bio da rede social que não comercializa cigarro eletrônico, o vaper cita a loja White Cloud Brasil. Nesse perfil, há um espaço dedicado a parcerias com perfis de influenciadores de alcance muito maior, com públicos que não são exclusivamente voltados para o cigarro eletrônico.
Modelos chamativos e vendidos pela loja foram entregues, por exemplo, para o MC Menor e o MC Jottapê, que possuem, respectivamente, 4,9 milhões e 6,5 milhões de seguidores. Por meio dos stories, elogiando e mostrando os produtos recebidos, a divulgação é bem mais ampla.
Os perfis e canais no Youtube são muitos, mas o alcance de cada conta é diferenciado. Alguns não chegam a 10 mil inscritos. Entre eles, o Vapor e Ciência, patrocinado pela loja Vape Zone BR, o perfil Mariano Vaper e o Vaporacast, primeiro podcast brasileiro exclusivamente sobre cigarro eletrônico, apresentado por Miguel Okumura. Há canais populares como O Poderoso Vapor, comandado por Filipe Collioni, com pouco mais de cem mil inscritos no Youtube. Já o Zona do Vapor, que conta com 191 mil inscritos no canal e 58,9 mil seguidores no Instagram, de Marcelo Fraresso, acumula mais de 17 milhões de visualizações desde que foi criado, em 2017.
O SmokeVapor, comandado pelo “vaper” que se apresenta como Sardinha, possui 188 mil inscritos no Youtube e acumula mais de 12,8 milhões de visualizações desde 2015. Já no Instagram, em abril deste ano, eram 37,9 mil seguidores. O perfil apresentava feedbacks de clientes e preços dos equipamentos nos destaques.
Articulação dos “vapers” Os fóruns de discussão também são um espaço de articulação dos “vapers”, entre eles o VapeOn, criado pelo Vapor Aqui, que, além disso, nomeia grupos no Facebook como o Vapor Aqui – Negócios e Vapor Aqui – Ajuda para o vaper.
Segundo analisa Thaysa Nascimento, pesquisadora do Centro de Estudos do Consumo da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Coppead/UFRJ), o discurso comparativo com o cigarro tradicional e o apelo tecnológico do produto podem influenciar outros indivíduos a desenvolverem esse tipo de consumo. “A estratégia é extremamente visual, com a fotografia sendo pensada para atrair”, diz.
Fiscalização
Segundo a Anvisa, entre 2018 e 2019 foram publicadas 76 decisões em primeira instância relacionadas a autos de infração envolvendo a propaganda e exposição à venda de dispositivos eletrônicos para fumar. O levantamento mais recente em relação ao monitoramento de vendas online aponta que 727 anúncios do produto foram retirados do ar entre 2017 e 2018. A Receita Federal informou que, entre 2017 e 2020, apreendeu mais de 83 mil unidades de cigarros eletrônicos no país.
Fonte: POLÊMICA PB
Créditos: UOL