Quando começou a trabalhar como coveiro, Fabrício da Silva Pascoal tinha pelo menos um pesadelo por semana. Os sonhos eram parecidos entre si: túmulos revirados, restos mortais para fora dos caixões e pessoas estranhas mexendo nas covas. Um caos que dependia só dele, um único funcionário, para organizar. “Parecia um pouco aquele clipe ‘Thriller’ do Michael Jackson”, conta.
Quase 15 anos depois desde seu primeiro dia de trabalho, Pascoal concluiu que não eram pesadelos, mas apenas sonhos sobre o trabalho. “Sabe quando você sonha com alguma coisa no trabalho que está incomodando? É a mesma coisa”, explica o coveiro de 45 anos. Hoje, mais experiente, tem pelo menos um sonho assim por ano.
Fragmentos da rotina de trabalho de Pascoal são publicados de forma descontraída no seu canal no YouTube, batizado de “Vídeos Aleatórios do Coveiro”. No canal, o sepultador conta detalhes do trabalho, como mantém seu psicológico para lidar com a morte todos os dias e registra também as exumações que realiza no cemitério municipal São João Batista, situado no município de Guarapari, parte da região metropolitana de Vitória (ES).
As exumações são um expediente comum em qualquer cemitério brasileiro. Em grande parte dos municípios, há um prazo de três anos para exumar um morto — quase sempre para liberar espaço para um novo sepultamento ou quando o jazigo da família passa por alguma reforma.
No YouTube, fora o canal do coveiro capixaba, não é incomum encontrar vídeos de pessoas comuns acompanhando a exumação de um parente. Grande parte possui milhões de visualizações.
“Medo do desconhecido”
A câmera do celular foca no caixão de madeira coberto por uma camada branca de cal que se desmancha só com o toque. Primeiro se vê o topo do crânio, coberto por um véu quase transparente, depois a dentadura com os dentes imaculados. Selecionando os ossos com cuidado, o coveiro narra de modo articulado todo o processo. Nomeia os ossos, explica os processos naturais de decomposição e o porquê está fazendo isso. Do caixão, os ossos vão para um saco preto e permanecerão na mesma cova, só que desta vez na companhia de um novo defunto.
Já antecipando uma pergunta recorrente, Pascoal dá a mesma explicação presente em todos os outros vídeos similares que publica em seu canal. “Isso aqui é matéria que se decompõe, não estou atrapalhando o descanso de ninguém. A alma já está descansando”, avisa pacientemente.
Depois da dúvida dos restos mortais, outra pergunta campeã é se o coveiro já testemunhou um evento sobrenatural. “Nunca vi nada e imagino que nunca verei, porque não tem nada para se ver. As pessoas têm esse temor né? Mas não existe e pronto”, diz, sucinto.
Nos comentários, os espectadores agradecem o didatismo e a chance de se preparem no futuro para exumações de parentes já enterrados. Muitos expressam vontade de trabalharem como sepultador, outros dizem que os vídeos dão medo. “Todos ficaremos assim um dia, e tem muita gente se achando o centro do Universo”, filosofa um espectador na caixa de comentários.
O vídeo mais assistido do canal já passa das três milhões de visualizações, consagrando Pascoal como figura de um nicho obscuro na plataforma que trata de assuntos relacionados à morte e questões funerárias.
“A maioria se atrai pelo medo do desconhecido, mas tem aqueles que assistem como se fosse Netflix”, resume o youtuber sobre a curiosidade em torno dos registros. Pelas dúvidas, quase sempre iguais, há uma visível aflição de que os restos mortais possam ser descartados ou de alguma forma desrespeitados. “Nunca. Os restos mortais ficam no cemitério e não devem sair de lá”, garante.
O coveiro decidiu abrir o canal em 2019 quando notou a curiosidade de outras pessoas acerca do ofício. Em uma ocasião, foi chamado para ser testemunha em uma investigação policial — e o investigador passou mais tempo perguntando coisas da profissão do que anotando o depoimento.
O Bem-Amado
O cemitério municipal São João Batista é o cenário dos registros de Pascoal e está próximo à Praia das Virtudes, no centro da cidade, descansando entre prédios altos. A cidade foi reconhecida como um município na segunda metade do século 19 e, o cemitério, construído em 1906 — mas teve de esperar uma década para receber seu primeiro sepultamento.
A demora não pegou bem, despertando uma certa desconfiança de que a necrópole foi construída como desculpa para os políticos da cidade desviarem dinheiro. Para solucionar o imbróglio, o prefeito da época pediu emprestado um defunto da cidade vizinha.
E assim, em 1916, inaugurou-se oficialmente o São João Batista com o enterro de uma andarilha desconhecida, sepultada sob os olhos dos habitantes de Guarapari, mas sem nome e família.
A história do primeiro cemitério da Guarapari é tão brasileira que inspirou o dramaturgo Dias Gomes a escrever a novela “O Bem-Amado”, onde o prefeito Odorico Paraguaçu, da pequena cidade de Sucupira, contrata um pistoleiro para inaugurar um cemitério ainda sem defuntos.
Atualmente, a rotina no São João Batista segue pacata. Segundo Pascoal, não é incomum passar um mês sem qualquer sepultamento,. Muito se deve ao fato e que grande parte dos guaraparienses é enterrada em outro cemitério, construído nos anos 1970, cinco vezes maior.
Descaso com a morte
A paz do São João Batista foi só abalada na pandemia quando, em abril de 2021, Pascoal trabalhou em treze sepultamentos. Preocupado com quem fica, o coveiro admite que foi menos inflexível com as regras de segurança e permitiu que os familiares se aproximassem do caixão para dizer adeus.
Em um dos sepultamentos, em março de 2021, Pascoal ainda se recorda da família assistindo ao velório da matriarca a 200 metros de distância. Enquanto o caixão descia na cova, de longe, os enlutados gritavam adeus: “Tchau, mamãe!”. “Isso me abalou demais. Nunca tinha visto uma coisa dessas”, conta.
Durante os 15 anos de ofício, o sepultador desenvolveu técnicas psicológicas para lidar com a morte todos os dias, trabalhando no “modo robô”. Todavia, a humanidade não se esvai. “Já enterrei amigos, conhecidos que vinham conversar comigo no cemitério. É muito difícil quando a gente tem que sepultar adolescente e criança. Eu sou pai e não tem como não se colocar no lugar de quem está ali”.
Por conta disso, Pascoal diz que faz o possível para receber da forma melhor forma quem está velando um morto. “As velhinhas me adoram porque eu sempre ajudo”, conta, alegre. O coveiro também defende que seja realizado algum treinamento com assistentes sociais ou psicólogos para os colegas da profissão saberem lidar com os visitantes.
No entanto, tendo em vista o descaso com a morte e a negação do luto no Brasil, Pascoal não vislumbra ainda um reconhecimento necessário para a profissão. O teto para o ofício é de um salário mínimo, faltam boas condições de trabalho e grande parte dos colegas, inclusive ele, mantém um segundo emprego para sustentarem as famílias.
“Por causa dessa banalidade da morte, o cemitério é sempre deixado de lado. As necessidades do cemitério nunca são relevantes”, lamenta. “Pedi para cortarem a grama do cemitério por causa do Dias das Mães, que é a segunda data mais cheia daqui, e não fizeram. Há um desdém com o cemitério e nós, funcionários, entramos nesse pacote. Nós fazemos parte desse desdém.”
Vida de sepultador
Pascoal começou a trabalhar no cemitério em 2006. Sua função principal, explica, é de construtor. Porém, por não conseguir comprovar sua experiência em obras, fez a prova para coveiro e passou em primeiro lugar. Da turma de seis colegas que passaram no concurso, apenas dois, contando com Pascoal, permaneceram na função.
A função não o animou muito, mas logo no começo, tirando os sonhos de trabalho, Pascoal percebeu que estava à vontade. “Descobri que gosto de fazer meu trabalho, achei o meu lugar e a minha zona de conforto”, conta.
Para o coveiro, o motivo de tamanha curiosidade também se deve à presença tímida de colegas do mesmo ofício na internet. Segundo ele, a baixa escolaridade de grande parte dos trabalhadores do setor dificulta a troca de informações. O próprio Pascoal só conseguiu chegar até a oitava série porque já trabalhava desde criança.
“Mas eu lia muito na escola e continuei lendo na adolescência. Por conta disso, erro menos”, justifica, sorrindo. No sótão de casa, reside uma pequena biblioteca onde estão os seus clássicos favoritos — Machado de Assis, Graciliano Ramos, José de Alencar, Jorge Amado. “A lista é longa”, afirma.
Postando sem compromisso no seu canal, hoje com mais de 50 mil inscritos, e sem a possibilidade de monetizar os vídeos por conta do conteúdo, Pascoal recebe apoio de seguidores que aguardam ansiosos pelo próximo vídeo. O sepultador se diz satisfeito com o interesse. “Acho que dou respostas para perguntas que ninguém respondeu antes”.
Fonte: UOL
Créditos: Polêmica Paraíba