QUEM OLHA PARA os R$ 30 mil mensais no contracheque do capitão da reserva Valdir Souza Brasil ficaria surpreso ao saber que ele passou a maior parte da carreira no Exército como praça. Essa é, no jargão militar, a denominação da casta inferior da hierarquia, formada por servidores que ingressam no serviço em cargos de nível médio.
Brasil levou 30 anos para ascender de cabo a subtenente, a patente mais alta a que um praça pode aspirar. Mas tudo mudou em 2019. Mesmo sem ter até hoje um diploma de ensino superior, ele ingressou no Quadro Auxiliar de Oficiais do Exército – que deveria ser, mas nem sempre foi, restrito a quem fez um curso universitário. Isso lhe valeu um salário base de R$ 19,8 mil, 40% maior que o de um praça em final de carreira na ativa.
Após se tornar oficial, Brasil fez um curso de atualização de meros quatro meses oferecido pelo próprio Exército. Graças a isso, terá em breve um generoso aumento de R$ 6,6 mil.
Não acabou. Em dezembro de 2020, após 34 anos de carreira, o capitão Brasil deixou o serviço ativo. Isso lhe permitiu embolsar um bônus de R$ 158,4 mil, mais uma das regalias exclusivas a militares, e que o Exército prefere chamar de “ajuda de custo” pela passagem à reserva remunerada.
Mas Brasil segue ativo – na política.
Como tem um cargo comissionado na equipe que assessora o vice-presidente Hamilton Mourão em reuniões com autoridades estrangeiras e no Conselho Nacional de Defesa, ele elevou sua remuneração bruta a R$ 30,1 mil mensais.
A vertiginosa sucessão de promoções e regalias não é um privilégio do capitão Brasil, mas de qualquer um que vista um uniforme militar. Trata-se de uma cortesia da lei criada no Palácio do Planalto por Bolsonaro e seus generais. A 13.954 reformou a carreira e a previdência dos militares, entre outros benefícios.
Em vez de cortar os gastos do contribuinte brasileiro com o pessoal das Forças Armadas, a lei fez com que eles aumentassem em 7% em 2020 – e o cálculo só inclui o pessoal da ativa. No total, o crescimento com gastos militares após a reforma foi 17% maior que o esperado, segundo o próprio Ministério da Defesa.
Bolsonaro passa tropas em revista após tomar posse como presidente, em 2019: Tribunal de Contas da União descobriu que governo do capitão reformado escondeu gastos causados pela reforma da previdência das Forças Armadas – e inflou artificialmente a dos servidores civis.
Tirar dos civis para gastar com militares
Aprovada em dezembro de 2019, a lei 13.954 deixa claro por que a alta hierarquia militar – no caso do Exército, as patentes de tenente a general – se dobra facilmente a Bolsonaro.
Já pelos praças, a camada de baixo da hierarquia, a 13.954 é conhecida como a “lei perversa”. Para muitos deles, os penduricalhos criados pela reforma para compensar as mudanças na previdência são menores que os descontos decorrentes, causando uma redução salarial que deverá afetar 179 mil militares da ativa, o contingente de praças não graduados das três forças.
Quando o projeto de lei foi enviado ao Congresso no início do governo Bolsonaro, ministros e aliados do presidente garantiam que não haveria aumento de despesas nem de salários. Era mentira. A reforma dobrou ajudas de custo, mais que dobrou adicionais por formação em cursos realizados na caserna e criou um penduricalho extra, o adicional de disponibilidade.
Na prática, isso detonou um processo de aumentos em série para ao menos 25 mil militares — especialmente altos oficiais, já que foram atrelados ao soldo, o salário-base de cada patente. E criou a incrível categoria de militares que, mesmo tendo concluído apenas o ensino médio, são melhor remunerados que servidores públicos civis com doutorados.
Isso não passou despercebido. As benesses estão na mira do Tribunal de Contas da União, o TCU, que identificou uma maquiagem nos números.
Em uma auditoria das contas públicas do governo em 2020, o TCU concluiu que Bolsonaro reduziu propositalmente as estimativas de gastos com militares em sua contabilidade. Despesas de R$ 52,7 bilhões em previdência e pensões – as famosas pensões pagas a viúvas e filhas de militares – foram escondidas.
A mesma análise detectou que o governo inflou — em R$ 49,2 bilhões — os custos previdenciários com servidores civis, valor suficiente para cobrir, na conta adulterada, o rombo causado pelos privilégios da caserna. A farsa enganou parlamentares e sociedade e garantiu a aprovação tranquila do texto.
Em 2020, o Ministério Público Federal pediu ao TCU que investigasse os reais impactos da reforma aos cofres públicos. Mas o ministro-substituto Augusto Sherman, do TCU, isentou o Ministério da Defesa de dar explicações.
Sherman acumula no currículo quatro medalhas de Mérito Militar, concedidas pelas Forças Armadas entre 2003 e 2011. Tais honrarias são entregues a autoridades que tenham prestado “relevantes serviços” às instituições militares.
O ministro Augusto Sherman, do Tribunal de Contas da União: com uma coleção de medalhas por serviços prestados às Forças Armadas em casa, ele isentou o Ministério da Defesa de explicar o rombo causado pela reforma previdenciária dos militares.
A incrível fábrica de ‘doutores’
Um pelotão de mil praças se formou, em 2019, no Curso de Atualização do Quadro Auxiliar de Oficial, o CA-QAO. Entre eles, nosso personagem, o capitão Brasil.
Graças a uma portaria, a número 86, de 2020, que regulamenta quem pode ganhar o adicional de habilitação turbinado pela lei da reforma, o CA-QAO ganhou status de “Altos Estudos I”. Na prática, isso o tornou equivalente a um doutorado stricto sensu.
Assim, militares que passam por treinamentos internos das próprias Forças Armadas – muitos com poucos meses ou até semanas de duração – passam a fazer jus a um aumento salarial superior ao que recebe um professor com doutorado que dá aulas em universidade federal. A portaria que garantiu a regalia foi assinada pelo então ministro da Defesa, o general Fernando Azevedo e Silva.
Um docente das federais, por exemplo, recebe R$ 5,1 mil extras pela titulação, caso trabalhe em regime de dedicação exclusiva. No caso do capitão Brasil e seus colegas de patente, o bônus chegará a R$ 6,6 mil em 2023, quando o adicional alcança 73% de aumento. Hoje o reajuste está em 54%.
‘As Forças Armadas viraram uma fábrica de mestres e doutores, mas vários deles nem sequer têm uma graduação’.
Pelas regras do Ministério da Educação, o MEC, um curso de doutorado stricto sensu tem duração de quatro anos e 720 horas-aula. Ao final, é preciso produzir uma tese original, que em muitos casos exige dedicação exclusiva à pesquisa e deve ser aprovada por uma banca formada por quatro professores-doutores. O aluno também é obrigado a concluir 40 créditos e apresentar artigos científicos. E, caso receba bolsa de agências de fomento estatais, também precisa fazer um estágio dando aulas no ensino superior.
Já os cursos militares elevados à categoria de “Altos Estudos I” incluem a especialização em Mestre de Música, destinada a sargentos e subtenentes músicos – ambos praças. A cada ano, o curso abre 25 vagas e forma um novo pelotão inédito de músicos após sete semanas de aulas. Mas eles saem aptos a um aumento salarial próximo ao de um professor universitário que conclui o doutorado. Aos sargentos, o prêmio alcançará um aumento de R$ 4 mil. Para os subtenentes, serão R$ 4,5 mil mensais.
E o aumento terá reajustes anuais. Eles começam em 42% e chegarão, em 2023, a 73% do soldo do militar. Desde julho de 2021, o capitão Brasil e os mais de mil oficiais que fizeram o CA-QAO tiveram o equivalente a um quarto de seus soldos como reajuste.
Vamos agora às regalias dos oficiais superiores. Para quem possui patentes de major, tenente-coronel, coronel e general, há um curso de Gestão de Assessoramento do Estado-Maior. Apesar de o próprio Exército classificá-lo como uma especialização lato sensu, o curso, após a reforma, se tornou equivalente a um mestrado stricto sensu na portaria 86, que o elenca na modalidade de “Altos Estudos II”. Graças à lei 13.954 de Bolsonaro e à portaria do Ministério da Defesa, quem concluir essa formação fará jus a um reajuste equivalente a 68% do soldo.
O Intercept leu um trabalho de conclusão do curso, que dura cerca de seis meses. Ele foi produzido por um major e consiste em uma revisão bibliográfica de 21 páginas. É menos do que se exige num trabalho de conclusão de curso de graduação, mas irá render R$ 7,5 mil mensais extras – e vitalícios – ao oficial. Importante: para fazer um desses cursos, o militar depende da prévia autorização ou ordem do comandante.
TCC – Escola de Formação Complementar do Exército23 pages
Para o advogado e militar da reserva Cláudio Lino, a manobra de equiparar cursos internos da força a pós-graduações stricto sensu é uma tentativa de justificar artificialmente um aumento salarial para as tropas. “As Forças Armadas viraram uma fábrica de mestres e doutores, mas vários deles nem sequer têm uma graduação”, ele nos disse.
Além disso, o advogado vê prejuízo aos princípios de isonomia e moralidade, porque, como servidores públicos, os militares não podem gozar de privilégios desproporcionais às demais carreiras e à própria formação.
Diretor-presidente do Instituto Brasileiro de Análise de Legislações Militares, o Ibalm, e especializado no estudo das leis feitas pela caserna, Lino costuma representar militares de baixa patente na justiça em ações contra as Forças Armadas. Hoje, muitos de seus clientes se sentem lesados pela nova lei.
Por causa disso, o Ibalm entrou na mira do Ministério Público Militar e da Advocacia-Geral da União. Os dois estão investigando associações como a de Lino e querem fechá-las por alegados crimes contra a autoridade militar. A investigação é vista por seus alvos como uma tentativa do governo de calar os críticos, contrariando a lei que permite manifestações políticas a militares da reserva. As notas golpistas do Clube Militar, por exemplo, jamais incomodaram o alto comando.
A portaria do Ministério da Defesa que instituiu as equivalências a pós-graduações pode ser considerada inconstitucional. Ao menos é o que escreveu o ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, o STF, no livro “O controle da constitucionalidade no direito brasileiro”. Para o magistrado, nem uma portaria, nem um decreto que regulamenta uma lei pode inovar e se sobrepor à Constituição. Ou seja: portaria não cria direito.
No final do ano passado, o STF decidiu que é inconstitucional que um servidor sem curso superior completo ocupe um cargo destinado a pessoas com diploma universitário. Se valer a jurisprudência, a portaria pode causar, em breve, uma queda abrupta nos rendimentos dos militares que têm apenas o ensino médio, mas que passaram a ganhar como doutores em cargos destinados a pessoal com nível superior.
A equiparação de cursos internos do Exército a pós-graduações não é uma novidade. Ao menos desde 2015, doutorados do ensino civil e até a livre-docência, o mais alto título acadêmico que um pesquisador pode almejar, valem o mesmo que uma graduação concluída no Instituto Militar de Engenharia até 1981 ou de cursos com 10 meses de duração como, por exemplo, o Internacional de Estudos Estratégicos, da Escola do Estado-Maior do Exército.
A inovação da portaria 86 é levar o privilégio a praças das três forças que cursaram apenas o ensino médio. Naturalmente, a procura pelas formações explodiu.
O vice-presidente Hamilton Mourão deu um cargo de assessor de gabinete, com salário de R$ 10,3 mil brutos mensais, ao capitão Brasil, formado apenas até o ensino médio.
Tudo às escondidas
No Brasil, nem o MEC, nem a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, a Capes, têm a prerrogativa de avaliar os cursos oferecidos aos militares. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação instituiu, desde 1996, a diferenciação entre o ensino civil e o militar, o último regulado por lei específica.
A formação militar é atribuição dos estados-maiores militares, que têm liberdade total para propor currículos, selecionar professores e criar as regras de aprovação dos alunos. Isso explica por que o Ministério da Defesa ou as próprias Forças Armadas se sentem à vontade para bizarrices caríssimas como a portaria 86, sem dar bola para quaisquer critérios estabelecidos pelo órgão máximo da educação no país.
‘É claro que a carreira militar é distinta da civil. Mas assuntos de defesa não são exclusivos dos militares’.
A Capes só consegue fiscalizar quando os cursos também são reconhecidos no mundo acadêmico, como os oferecidos pelo Instituto Militar de Engenharia, o IME.
Segundo o professor de Ciência Política Eduardo Svartman, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, a UFRGS, embora a legislação tenha diferenciado os dois sistemas de ensino, o alto grau de autonomia da formação militar não é saudável, nem desejável em uma democracia.
“É claro que a carreira militar é distinta da civil. É natural que militares tenham suas próprias instituições de ensino, que são muito antigas”, explicou.
“Apesar disso, a falta de controle, supervisão e acompanhamento externo não permite o escrutínio público de como é essa formação, nem favorece a troca de conhecimento entre escolas civis e militares. E assuntos de defesa não são exclusivos dos militares”, disse Svartman, atual presidente da Associação Brasileira de Estudos da Defesa, a Abed, criada em 2005.
Perguntamos ao Ministério da Defesa quais os critérios de equivalência de cursos destinados a militares com ensino médio a doutorado, mas não obtivemos uma resposta. A pasta limitou-se a listar leis e portarias que normatizam o ensino militar nas três forças e argumentou que os cursos internos promovem a formação e o aperfeiçoamento de quadros especializados em atividades militares.
Procuramos a vice-presidência da República para entender como o capitão Brasil é assessor do gabinete. Também fizemos perguntas sobre o salário dele, equivalente ao de um professor-doutor, mesmo que o capitão tenha apenas o ensino médio. Tudo o que o gabinete de Mourão respondeu é que segue a Constituição, que garante à administração a livre nomeação e exoneração de quaisquer cargos comissionados, e que não há “exigência nenhuma de escolaridade específica” para essas funções.
Um bônus para estar disponível
O aumento progressivo no adicional de habilitação não é a única distorção criada pela lei que reestruturou as carreiras dos fardados. Há mais um penduricalho, chamado adicional de compensação por disponibilidade militar, uma espécie de bônus “em razão da disponibilidade permanente e da dedicação exclusiva”. Como a carreira militar exige dedicação exclusiva, o adicional, no fim das contas, é pago a todo mundo.
O tal adicional rendeu ao capitão Valdir Brasil R$ 1,1 mil mensais. Além de indecente, o penduricalho amplia a desigualdade social na caserna. O bônus alcança todos os militares, mas os percentuais são menores quanto menor é o salário. Enquanto rendeu a soldados, marinheiros, fuzileiros, taifeiros, cabos e terceiros-sargentos – a base das forças – um reajuste de 5% a 6%, aumentou a remuneração de generais no topo da carreira em até 41%. Em termos absolutos, a disparidade é ainda mais visível: a gratificação dos praças varia de R$ 50 a R$ 230; a dos generais chega a R$ 5,5 mil.
A desfaçatez é tamanha que até quem está na reserva recebe o adicional. “A lei diz que o adicional se refere àquele que está disponível à força. Um militar que passa para a reserva não está mais disponível”, apontou o advogado Lino.
Apesar de as Forças Armadas rechaçarem a ideia de que a saída da ativa é uma forma de aposentadoria, menos de 1% dos militares da reserva remunerada são convocados para trabalhar, segundo levantamento feito em 2019 pelo UOL. Ainda assim, a transferência para a reserva vale uma “ajuda de custo” que já foi equivalente a quatro salários do militar quando na ativa. Graças à reforma, o valor dobrou – passou a oito.
Valdir Brasil, com quem abrimos essa história, ganhou como ajuda de custo uma bolada de R$ 158,4 mil quando foi transferido à reserva do Exército, em dezembro de 2020. Já o general da ativa e ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello irá, quando finalmente passar à reserva, ganhar um prêmio de pelo menos R$ 248,6 mil, mas que pode chegar a inacreditáveis R$ 320 mil, se ele permanecer na ativa por mais dois anos.
Com Bolsonaro, o Brasil certamente melhorou para gente como o capitão Brasil.
Fonte: The Intercept
Créditos: The Intercept