Para quem escandalizou (e seduziu) a tradicional família brasileira nos anos de chumbo da ditadura – e dali por diante – com seus poderosos vocais e performances provocativas, com pouca ou quase nenhuma roupa, eu não esperava ouvir de Ney Matogrosso que ele é um cara “friorento”. Mas, na tarde de inverno em que conversamos, essa foi uma das primeiras coisas que ele logo me contou, de seu apartamento no Leblon. “As pessoas não imaginam isso de mim”, diverte-se. Mas quem também pensou que, por conta do frio de que reclamava, Ney estaria hibernando, recolhido debaixo das cobertas, muito ao contrário: no auge dos 80 anos recém-completados (no dia 1º), Ney decidiu sair do conforto de suas mais de cinco décadas de carreira, 27 álbuns de estúdio e um Grammy Latino honorário para gravar com a Sony Music Nu com a Minha Música, álbum digital que teve uma de suas quatro partes lançadas no mesmo dia de seu aniversário e terá todas as faixas no streaming até o fim do ano. “Na verdade, gostaria de lançar um CD. Gosto de capa, foto, informação, letra, materialidade”, confessa o cantor, adiantando que haverá, sim, uma versão física reunindo as canções, prevista para novembro. “Mas ainda não decidi se será CD ou LP”, completa, fazendo mistério.
Apesar de serem todas faixas compostas anteriormente, Ney não tinha gravado nenhuma delas. As canções escolhidas para estrear em agosto foram: Nu com a Minha Música, de Caetano Veloso (que dá o título do álbum, de 1981); Se não For Amor, Eu Cegue (2011), de Lenine e Lula Queiroga; Gita (Raul Seixas e Paulo Coelho, 1974); e Unicórnio Azul (1982), do cubano Silvio Rodríguez. “Só coisas que tinha vontade de cantar, mas que nunca estiveram no meu repertório”, explica e conta que o processo de escolha do tracklist foi totalmente intuitivo. “ É um disco despreocupado, de músicas que ouço e gosto”, emenda. Os arranjos foram distribuídos para quatro músicos com quem Ney já trabalhou: o pianista Leandro Braga, o tecladista Sacha Amback, o violonista Marcello Gonçalves e o guitarrista Ricardo Silveira, que dirigiu musicalmente Ney Matogrosso Interpreta Cartola, 19º álbum solo do cantor, lançado em 2002, com canções compostas pelo icônico sambista – e que Ney confessa ser um dos quatro discos preferidos de toda sua trajetória, ao lado de Vagabundo (com Pedro Luís e a Parede, de 2004), As Aparências Enganam (com o grupo Aquarela Carioca, de 1993) e Olhos de Farol (1999). “Não que os outros não sejam bons, mas acho estes especialmente bem realizados”, defende, sem modéstia alguma.
Apesar da atitude blasé diante das 80 velinhas sopradas – “nunca tive nenhuma expectativa com datas específicas de aniversário. O passado foi ótimo, mas acho que o agora também pode ser” –, a data também não passou despercebida pelo mercado editorial. Haja vista Ney Matogrosso – a Biografia, que a Companhia das Letras lançou no último 23 de julho. Escrito pelo jornalista Julio Maria (o mesmo que escreveu Elis Regina, Nada Será como Antes), o livro levou cinco anos de pesquisa, em que o autor realizou cerca de 200 entrevistas. Julio visitou a casa em que Ney nasceu em Bela Vista, no Mato Grosso do Sul, a vila militar de Campo Grande (MS) onde o artista passou uma conturbada adolescência com seu pai, e por aí vai. Apesar do exímio trabalho de pesquisa, Ney, que já tinha tido sua história de vida revistada por Denise Pires Vaz em Um Cara Meio Estranho (1992), conta que biografias sobre si mesmo não são muito a sua praia. “Por mim, não teria sido feita, sabe? Mas o Julio tem se dedicado há anos, tenho que considerar isso também”, desabafa. “Por isso, o ajudei em muitas coisas, oferecendo informações que ele não tinha”, completa o leonino, que compartilhou com o jornalista relíquias de sua trajetória nunca antes acessadas, como fotos de família, de bastidores da carreira mais caixas de correspondências com Raul Seixas, Gonzaguinha, Elis Regina e Cazuza, com quem viveu um tórrido relacionamento nos anos 80 quando o roqueiro despontava nas paradas nacionais.
Além disso, o autor, que também está preparando uma coletânea de sucessos musicais da carreira de Ney a ser lançada pela Warner no fim do ano, foi ao quartel da aeronáutica em que Ney serviu, na cidade do Rio de Janeiro – “foi onde vi dois homens se beijando pela primeira vez”, recorda o artista. Julio também encontrou um irmão mais velho do cantor (de quem a família de Ney sequer tinha notícias) e coletou documentos da época da ditadura, quando agentes federais vigiavam à risca os passos do cantor e de seu grupo Secos & Molhados (1971-1974), fundamento do rock psicodélico brasileiro. Foi ali que Ney, à revelia do conservadorismo vigente, conquistou público e crítica com suas performances sensuais e explosivas, sua voz andrógina, maquiagem maximalista, o corpo quase sempre nu, que chacoalharam a MPB da época e o colocaram, dali para frente, no pódio da música brasileira. “Aquela maquiagem do Secos & Molhados me proporcionou uma coragem de enfrentamento com a ditadura militar, com a caretice, que eu não sabia que tinha dentro de mim. Eu entrava no palco soltando fogo pela venta, exigindo o direito de me manifestar com liberdade”, reflete o cantor, que foi abandonando o make extravagante conforme foi se embrenhando em sua carreira solo, que teve início em 1975, com Água do Céu – Pássaro, álbum que continha o hit América do Sul, considerado o primeiro videoclipe da música brasileira. “Eu não tinha um rosto, era um personagem. Não preciso mais dessa postura. Já posso, sem tapar a cara, ser quem sou”, pondera.7
Se a maquiagem excessiva ficou para trás (“hoje só pinto os olhos”), a paixão pelos palcos permanece mais viva do que nunca: o cantor, que já tomou as duas doses da vacina contra a o coronavírus – “mas não tô dando mole por aí , não”, faz questão de ressaltar –, promete que, uma vez controlada a pandemia, vai retomar a turnê Bloco de Rua, que iniciou em 2019, mas foi interrompida quando as regras de distanciamento começaram a ser implantadas no ano passado. O cinema também o chama novamente: Ney, que já atuou em produções como Depois de Tudo (2008), de Rafael Saar; e Boni Bonita (2020), com Caco Ciocler, tem no horizonte uma cinebiografia a estrear e um longa com a cineasta Helena Ignez. “Adoro o tempo do cinema. Atuar, assim como subir num palco, ainda me dá aquele friozinho na barriga”, confessa. E o que mais Ney almeja para o futuro? “Sinceramente, continuo hippie, acreditando na paz e no amor. Não bobamente, mas como uma alternativa real”, explica. “Então, é isso que fico esperando ver na Terra: respeito, saúde, comida e liberdade para o povo brasileiro. E, quando falo liberdade, falo de todo o tipo de liberdade. Todas elas.”
Fonte: Vogue
Créditos: Vogue