O governo Bolsonaro vai pagar dois dólares mais caro – ou 20% mais – que governos estaduais pela vacina Sputnik V, por ter escolhido fazer o negócio usando a União Química como intermediária. A farmacêutica com sede no Distrito Federal pertence a um empresário que já doou dinheiro a um partido do Centrão, o PSD; tem um ex-deputado do Centrão como diretor; e conta com o lobby do líder de Bolsonaro na Câmara e ex-ministro da saúde, o deputado federal do Centrão Ricardo Barros, do PP do Paraná.
Cada uma das 10 milhões de doses contratadas pelo Ministério da Saúde custará o equivalente a 11,95 dólares. Já os governos estaduais irão pagar 9,95 dólares a dose. O prejuízo monumental só ainda não se concretizou graças à Agência Nacional de Vigilância Sanitária, a Anvisa, que levantou dúvidas razoáveis sobre a segurança da Sputnik V.
O contrato para a compra de 10 milhões de doses da Sputnik V por R$ 693,6 milhões foi assinado entre o então diretor de logística do Ministério da Saúde, Roberto Dias, e a União Química em 12 de março. Naquela sexta-feira, o general da ativa do Exército Eduardo Pazuello ainda comandava a pasta – na segunda-feira seguinte, Marcelo Queiroga seria anunciado no cargo. Feito o câmbio de dólar para real, o negócio sairá R$ 120 milhões mais caro do que se o governo tivesse imitado os estados, que trataram diretamente com a empresa russa que representa o Instituto Gamaleya, desenvolvedor da Sputnik.
Uma lei sancionada pelo próprio Bolsonaro em 10 de março – ou seja, dois dias antes do martelo ser batido com a União Química – permite a importação direta de vacinas contra a covid-19. Graças a ela, os governos de Bahia e Mato Grosso encomendaram vacinas diretamente do Fundo Russo de Investimento Direto. Fazendo isso, irão pagar 9,95 dólares a dose, segundo os contratos sigilosos recebidos pela CPI da Covid e analisados pelo Intercept.
Pelo câmbio de 31 de março, data da assinatura do contrato pelo governo matogrossense, cada dose sairia a R$ 56,02. O contrato entre o governo Bolsonaro e a União Química estabelece o preço de R$ 69,36 por dose – a partir do custo de 11,95 dólares a dose e com a moeda cotada em R$ 5,80, segundo a própria farmacêutica.
Questionada a respeito da discrepância de valores, a empresa nos respondeu que “o preço ofertado, [de] cerca de 11,95 dólares por dose, incluiu o risco de variação cambial por parte da União Química, frete sob condição de refrigeração até o Brasil, despesas de importação, custos de carta de crédito em favor do Fundo Russo, etiquetagem em português e farmacovigilância”.
Diz, ainda, que a comparação com o valor pago pelos governos estaduais “não é válida” e que “o preço de 9,95 dólares por dose é o padrão da vacina Sputnik V, considerando que a venda se dá na Rússia e todos os custos de transporte, seguro, importação, carta de crédito, farmacovigilância serão absorvidos pelos estados”.
“Com todos os custos envolvidos, a margem [de lucro] da União Química está em torno de 5%, [com a empresa] ficando com todos os riscos que envolvem o transporte de um produto biológico a 18 graus negativos”, argumenta ainda a farmacêutica, quase que se lamentando por ter feito o negócio.
Não é bem assim. Recebemos de uma fonte orçamentos para transporte das 1,15 milhão de doses da vacina Spunitk V da Rússia para o Brasil – trata-se da quantidade cuja importação pelo consórcio de estados do Nordeste foi autorizada pela Anvisa. O mais barato deles cobra 53 centavos de euro por dose – ou 0,63 dólares. O mais caro, 89 centavos de euro – ou 1,05 dólares. Importante: os preços por dose ficam mais baixos quanto maior for o número de vacinas a serem transportadas. Com uma encomenda de 10 milhões de doses, é provável que a União Química conseguisse valores ainda menores.
Um outro orçamento, de uma empresa estatal, trata dos serviços de farmacoviligância e atendimento telefônico a quem tomar as vacinas Spunitk compradas pelo consórcio Nordeste. Os dois serviços custam, juntos, R$ 0,18. A mesma empresa diz ser capaz de cobrar R$ 63 mil para dar conta do processo regulatório para nacionalização e liberação do uso e desenvolvimento técnico de bulas e material informativo em português. Os preços se referem às mesmas 1,15 milhão de doses de Sputnik.
Considerando os valores dos orçamentos, todos esses serviços não acrescentam um dólar ao custo final de cada dose da Sputnik V comprada por 9,95 dólares. Falta a União Química e o governo Bolsonaro explicarem a razão do outro dólar adicional do negócio fechado entre eles a 11,95 dólares por dose de vacina.
Caberá à CPI da Covid, que tem em mãos os contratos do Ministério da Saúde e dos estados para a compra da Sputnik V, apurar se as justificativas apresentadas pela União Química para cobrar 20% a mais por dose num contrato de venda de 10 milhões de unidades são razoáveis.
O contrato com o Ministério da Saúde abre a possibilidade de que a vacina vendida pela União Química seja importada ou produzida no Brasil, apesar da pasta sempre anunciar que as doses viriam da Rússia. A produção local do imunizante pela farmacêutica ainda é um sonho distante para uma empresa que sequer conseguiu uma autorização da Anvisa para que a Sputnik V seja usada emergencialmente ou sequer produzida por aqui.
Apenas um mau negócio?
O Fundo Direto de Investimento Russo é uma espécie de banco de investimento do governo de Moscou. Ele financiou o desenvolvimento da Sputnik V pelo Instituto Gamaleya e agora é responsável por vender a vacina na Rússia e no exterior. A venda é fechada por uma empresa russa chamada Limited Liability Company Human Vaccines. Foi essa empresa que o consórcio de estados do Nordeste, o fórum de governadores da Amazônia e o governo do Mato Grosso procuraram atrás de vacinas contra a covid.
Após as negociações, além do Mato Grosso, nove estados do Norte e Nordeste, fecharam, individualmente, contratos diretos com o fundo. Na prática, fizeram a compra diretamente dos produtores da vacina, sem intermediários. E pagando cerca de 2 dólares a menos por dose.
Os R$ 120 milhões a mais do contrato firmado pelo governo Bolsonaro com a União Química podem não ser apenas um mau negócio. Senadores que integram a CPI da Covid suspeitam que a farmacêutica teve nesse caso um papel similar ao da Precisa, que intermediou a venda das vacinas indianas Covaxin, produzidas pelo laboratório Bharat Biotech.
A Precisa entrou na mira da CPI após Luis Ricardo Miranda, que é servidor de carreira do Ministério da Saúde, denunciar ao Ministério Público Federal que havia pressões incomuns para agilizar os pagamentos para a empresa.
O irmão do servidor, Luis Miranda, que é deputado federal pelo DEM do Distrito Federal e bolsonarista, afirma que denunciou ao presidente tais pressões. Segundo ele disse à CPI, Bolsonaro lhe respondeu que a negociação era “rolo” do também deputado Ricardo Barros – que é líder do governo dele na Câmara.
Documentos enviados pelo próprio governo Bolsonaro à CPI, analisados pelo Intercept, revelam uma intensa articulação de vários órgãos federais em prol do negócio com a União Química. Uma série de reuniões, trocas de documentos e viagens ao exterior precedeu a assinatura do contrato, em 12 de março deste ano, para a compra de 10 milhões de doses da Sputnik V – que até hoje não foi aprovada pela Anvisa.
Após as conversas iniciadas em agosto de 2020, a pasta propôs um memorando de entendimento quatro meses depois, em dezembro. O contrato viria em mais três meses.
Para efeitos de comparação, os mesmos documentos – que estão em posse da CPI – registram também o passo a passo da negociação com a norte-americana Pfizer. Iniciadas, segundo o Ministério da Saúde, em 22 de abril de 2020 por iniciativa do laboratório, as tratativas só renderam um memorando de entendimento nove meses depois, em 24 de novembro. O contrato para fornecimento de vacinas, em 18 de março de 2021. Àquela altura, a Anvisa já havia concedido registro definitivo ao imunizante da norte-americana havia quase um mês.
Rogério Rosso, o negociador
Em julho de 2020, o então ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, recebeu uma visita de Rogério Rosso. Seria o primeiro de quatro encontros que teriam até dezembro. Em alguns, o visitante é listado apenas pelo nome; noutros, como ex-deputado federal. Mas ele já era diretor de negócios internacionais da União Química desde maio de 2019.
Rosso teve uma tumultuada carreira política no Distrito Federal. Trabalhou nos governos distritais de Joaquim Roriz e José Roberto Arruda, ambos assolados por escândalos de corrupção em série. Na esteira do caso que ficou conhecido como “mensalão do DEM” e que resultou na prisão de Arruda e na renúncia do vice-governador Paulo Octávio, Rosso – que havia presidido a Companhia de Planejamento do Distrito Federal, peça central do esquema –, acabou eleito pela Câmara Distrital para um mandato tampão de governador que durou oito meses.
Em 2015, Rosso foi eleito deputado federal e teve papel importante no impeachment de Dilma Rousseff. Em 2018, tentou se eleger governador, mas fracassou. Com isso, acabou contratado pela União Química, empresa que pertence a Fernando Marques. O empresário já se aventurou na política em 2018, quando tentou ser senador e fracassou.
Candidato mais rico do país naquele ano, ele distribuiu R$ 9,7 milhões em doações a campanhas, a maior parte para a dele mesmo, pelo Solidariedade. Mas também injetou R$ 2,6 milhões no PSD do Distrito Federal, partido de Rosso, e quase R$ 890 mil na campanha a governador do amigo.
No papel de negociador da Sputnik, Rosso se desdobrou. Além de se sentar com o olavista Ernesto Araújo, foi pessoalmente à Rússia, como revela um telegrama enviado pela embaixada brasileira em Moscou em 13 de janeiro deste ano. O documento, assinado pela encarregada de negócios da embaixada, Patrícia Wagner Chiarello, compõe o acervo de documentos requisitados pela CPI.
No longo texto, Chiarello explica que os executivos da União Química encontrariam o presidente do Fundo Russo de Investimento Direto, Kirill Dmitriev, e visitariam as instalações da Generium e da Binnopharm, dois grupos farmacêuticos locais autorizados pelo governo russo a produzir a vacina Sputnik V.
Mas nem tudo era simples. A diplomata narrou “dificuldades” como “o registro do imunizante russo no Brasil por falta de “harmonização de aspectos normativos referentes à produção da vacina e também de caráter informativo, visto que os laboratórios e a agência regulatória russos seguem padrões relativamente diferentes daqueles observados no Brasil, mas não incompatíveis”. Responder a cerca de 40 pedidos de informações feitos pela Anvisa também estava na lista de tarefas dos brasileiros em Moscou – a agência, como sabemos, causaria atritos na relação com os russos.
“[Os executivos brasileiros] alertaram que, devido à elevada demanda mundial por vacinas contra a covid-19, eventuais atrasos no processo de registro do imunizante russo junto ao referido órgão regulador brasileiro poderão prejudicar o fornecimento do medicamento ao país, não obstante a consideração do Brasil como parceiro prioritário pelo lado russo”, registrou a diplomata.
Ainda assim o negócio era promissor. “Uma vez iniciada a produção no Brasil”, projetava Chiarello, “a vacina deverá ser exportada para os demais países da região, em especial para aqueles que já registraram ou iniciaram a aplicação do imunizante, como Argentina e Bolívia”. “Os representantes do grupo farmacêutico brasileiro registraram que, para além do caráter central das negociações referentes à Sputnik V, há, tanto da parte brasileira quanto do lado russo, outros interesses convergentes na área agrícola, que poderiam ganhar impulso caso a cooperação para a produção de vacinas entre Brasil e Rússia seja exitosa”.
O lobby de Ricardo Barros
Para abrir as portas do Brasil para a Sputnik V, uma vacina cuja segurança é questionável, A União Química pressionou a Anvisa – direta e indiretamente.
Marques, o dono da farmacêutica, acusou a agência regulatória de agir politicamente. O áudio foi vazado em 18 de março, cinco dias após a assinatura do contrato milionário com o Ministério da Saúde.
O lobby já contava com um aliado poderoso. “Vamos enquadrar a Anvisa”, disse Ricardo Barros em entrevista. Sujeito sem meias palavras, Barros beirou a ameaça. “Eu opero com formação de maioria. O que eu apresentar para enquadrar a Anvisa passa aqui [na Câmara] feito um rojão”.
A entrevista do líder de Bolsonaro ao Estadão é de 4 de fevereiro, quando a negociação entre União Química e Ministério da Saúde estava nos ajustes finais e apenas duas vacinas (a Coronavac, do Instituto Butantan, e a Oxford/AstraZeneca, da Fiocruz) haviam recebido chancela da Anvisa. O aval da agência é a condição para que a empresa cobre a execução do contrato e o pagamento por parte do Ministério da Saúde.
O negócio que deverá gerar prejuízo milionário aos cofres da União tem sido ignorado na CPI, que passou os últimos dias distraída pela rocambolesca história do cabo da Polícia Militar de Minas Gerais que disse ter 400 milhões de doses de vacina para vender e que, ao oferecê-las a Roberto Dias, à época ocupante de cargo de nomeação política no Ministério da Saúde, ouviu um pedido de propina.
Marques, dono da União Química, e Rosso, o diretor, já foram convocados para falar na comissão, mas não há data para os depoimentos.
Enviamos uma série de perguntas ao Ministério da Saúde desde a segunda-feira, 5 de julho, pela manhã. Questionamos os critérios usados para definir o preço pago pelo governo federal à União Química, eventuais propostas diretas do Fundo Russo de Investimentos Diretos e se houve consultas a estados que também negociavam a compra da Sputnik V para definir uma estratégia em comum e um melhor preço. Não houve resposta.
Por fim, enviamos e-mail a Vladimir Primak e Dmitry Ustinov, executivos do Fundo Russo, questionando os diferentes preços pagos pelos governos federal e estaduais pelo mesmo produto – a vacina Sputnik V. Cópia das perguntas foram remetidas à Embaixada da Rússia no Brasil. Também não houve resposta até a publicação desta reportagem.
Fonte: Polêmica Paraíba
Créditos: The Intercept Brasil