A qualquer observador minimamente astuto é óbvio que, mesmo indiretamente, os programas policialescos alimentam, estimulam uma lógica permanente de violência social!
Investidos em um discurso de que apenas expõem a realidade trágica, disfarçam revelar a fragilidade do sistema, denunciar a incapacidade governamental de nos proteger…
Na prática, tudo o que fazem é “se alimentar de sangue”.
Esse vampirismo midiático é uma estrutura pobre, tosca em termos técnicos e conceituais, mas uma fórmula absoluta de sucesso. Modelo focado apenas em popularizar apresentadores e fazer de programas controversos campeões de audiência.
Os “policialescos” representam a total desconstrução de premissas e compromissos jornalísticos básicos. Não há prestação de serviços à sociedade, ao contrário, desinformam com notícias muitas vezes falsas, sempre precipitadas, pautadas em preconceito de classe, raça etc e tal.
Espetacularizam a “desgraça alheia” e vibram com o caos, fonte de conteúdo diário destes quadros.
O modelo virou “mania nacional”. Os exemplos locais saltam aos olhos em quase todas as TVs abertas paraibanas. Nem preciso citar nomes, basta ligar sua TV no horário do almoço e sofrer de indigestão televisiva.
Mas nenhum fenômeno aberrante da mídia local se compara ao caso de Wallace Sousa, líder de audiência em Manaus.
A trajetória do apresentador do “Canal Livre” é tão surreal, que virou série da Netflix.
“Bandidos na TV” é uma esmerada produção, um documento primoroso, com pesquisa profunda, vozes múltiplas, resgate de imagens reais e cronologia precisa.
Tudo bem, talvez pudesse resolver a apresentação da questão em menos episódios (são sete no total), ter sido mais direto em algumas abordagens, evitar repetições, ou mensagens semelhantes dos mesmos ou até diferentes personagens se repetindo…
Dinamizar a narrativa. Mas aí entram questões inerentes ao formato minissérie, talvez tratativas comerciais, que fogem ao controle.
Fato é que o produto final é um excelente trabalho documental e que pode ser referência para a cinematografia policial nacional. Plural, com participação de defensores, acusadores e envolvidos, sem condução de posicionamento.
Certo, certo, mas o que revela a série “Bandidos na TV”? O que há de tão tenebroso envolvendo a história do programa “Canal Livre”?
O formato do programa amazonense segue a estrutura padrão: corpos, entretenimento barato, muitos corpos, assistencialismo, mais corpos etc e tal.
O que torna o exemplo manauara diferente dos outros circos de horrores midiáticos nacionais é a acusação de que o programa literalmente produzia seu próprio conteúdo.
Repito: o programa gerava a sua própria matéria-prima.
Para ficar mais claro: o “Canal Livre” encomendava as próprias mortes que cobria.
Mais especificamente, o idealizador/apresentador, Wallace Souza mandava matar e mostrava no ar o crime, em primeira mão (tudo isso só me faz lembrar o roteiro do genial clipe de Cabidela, de Seu Pereira e Coletivo 401 – para quem não viu, ou conhece, segue link:
Fato é que as investigações concluíram que Walace, ex-policial expulso da corporação, comandava uma estruturada organização criminosa com ramificações em outras atividades, como tráfico de drogas.
Assim, ao “financiar” chacinas pela capital amazonense, o Poderoso Chefão eliminava concorrentes e gerava fato novo para seu programa. “Dois coelhos com uma única cajadada”.
Nesta equação se elegeu e reelegeu deputado, fez irmão vereador…
Um cidadão de conduta ilibada, defensor dos bons costumes, combatente da criminalidade…
Por outro lado, nada afasta a ideia de que havia uma clara perseguição política na condução das investigações.
Aliás, a dúvida é o sentimento frequente em relação ao caso Wallace Souza, pelo olhar aguçado do documentário.
Outra grande virtude da série é a cada episódio deixar-nos com a sensação de completa indecisão sobre a veracidade dos fatos. Até onde aquilo aconteceu naquela dimensão??
Não há certeza. Não há verdade absoluta. A única convicção é que todos mentem.
Assista, mesmo acreditando que “já viu esse filme”!!
Fonte: POLÊMICA PARAÍBA
Créditos: MARCOS THOMAZ