Aos 22 anos, Vitória Chaves da Silva já recebeu dois transplantes de coração. Seu terceiro órgão está com 50% de comprometimento e não há possibilidade de novos procedimentos, mas agora sua luta é outra: moradora de Luziânia (GO), a jovem briga para a prefeitura fornecer ajuda de custo, além de agulhas, seringas e placas de insulina necessárias ao tratamento de diabetes, condição desenvolvida após as cirurgias.
Com uma cardiopatia rara, a Anomalia de Ebstein, Vitória precisa fazer seis aplicações de insulina por dia. Além das questões de saúde, ela tem enfrentado problemas com a secretaria de Saúde de sua cidade para conseguir seringas.
Segundo a jovem, funcionários da pasta pressionam para ela reutilizar os equipamentos médicos. Uma servidora de Luziânia defendeu que Vitória usasse a mesma seringa de insulina oito vezes, pois, assim como não troca de escova de dentes todos os dias, não precisaria trocar de seringa.
Porém, em gravação feita por Vitória durante uma reunião com a servidora, a jovem explica que os médicos que a atendem no Incor (Instituto do Coração do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo) orientaram que as seringas fossem usadas só uma vez. O reaproveitamento traria riscos para a saúde (infecções), por conta de sua baixa imunidade.
“Então a sua escova de dentes é anti-higiênica. Pelo menos três vezes ao dia você escova os dentes”, responde a servidora no áudio a que o UOL teve acesso.
A mulher ainda ressalta que, a despeito da orientação dos médicos, a secretaria municipal de Saúde de Luziânia não conseguiria seguir tudo que estava “no papel”.
Outro dos embates entre Vitória e a prefeitura é o valor de R$ 150 diários estabelecido pelo SUS em caso de Tratamento Fora do Domicílio (TFD) e repassado pelo município.
“Recebíamos uma ajuda de custo de R$ 30, mas minha mãe recorreu à Justiça. Hoje, pagam R$ 150. Depois disso comecei a ouvir que eu era um gasto para o governo, que estava usando dinheiro do povo e era um abuso eu receber mais e outras pessoas, menos Vitória Chaves da Silva
De acordo com Vitória, a pasta orientou que ela não fosse mais acompanhada pela mãe durante as viagens entre Goiás e São Paulo para conter gastos.
Três corações em 22 anos
A luta de Vitória pela vida começou antes mesmo de ela nascer. Quando ainda estava no sétimo mês de gestação, sua mãe, Cláudia Aparecida da Rocha Chaves, 39, descobriu que a filha tinha uma cardiopatia grave, mais tarde diagnosticada como Anomalia de Ebstein.
Essa condição é uma má formação da válvula tricúspide, que fica em posição mais baixa, permitindo que o sangue escape do ventrículo para o átrio. Em outras palavras, o coração de Vitória não consegue separar o sangue arterial, rico em oxigênio, do venoso, pobre no gás. Como se misturam, ela enfrenta problemas de respiração.
Vitória Chaves da Silva, aos 7 anos, após o primeiro transplante de coração, ao lado da mãe, Cláudia Aparecida da Rocha Chaves Imagem: Arquivo Pessoal
Os médicos afirmaram que Vitória teria só 15 dias de vida, mas ela sobreviveu. Mas com dificuldades. “Não respirava direito, ficava com as pontas dos dedos roxas, também me sentia muito cansada. Por isso, fiz a primeira cirurgia com 2 anos”, disse.
O procedimento aconteceu em Goiânia (GO), mas, ao retornar à Brasília (DF), onde fazia tratamento na época, ela ouviu da médica do caso que a cirurgia não foi suficiente e precisaria ir a São Paulo.
“Chegando lá, pediram um cateterismo. No meio dele, tive uma parada cardíaca. Falaram que eu não aguentaria uma cirurgia. Fiquei um ano e quatro meses em uma casa de apoio esperando o primeiro transplante”, lembrou.
Aos sete anos, veio o primeiro transplante. Após receber o novo coração, Vitória viveu normalmente por mais de 10 anos, até que o órgão começou a apresentar os mesmos problemas que o antigo. A jovem percebeu que estava se cansando muito facilmente. Logo, precisou ser internada novamente. Durante a nova passagem pelo hospital, infartou mais de dez vezes.
“Toda vez que infartava, colocavam a morfina. Tomava 24 horas. Quando vinha a dor, apertava um botão e liberava uma dose extra. Mas, mesmo assim, não adiantava muito. As dores eram muito fortes”, contou.
Em 31 de outubro de 2016 e já com três meses na fila de espera, Vitória teve uma piora considerável. A equipe médica constatou que ela precisaria de um transplante urgente.
Enquanto aguardava pelo terceiro coração, a situação piorou e os médicos decidiram colocar um balão intra-aórtico, que funcionaria como um “coração artificial”. O problema é que, se aplicado por mais de 15 dias, o procedimento traz riscos, que podem levar até ao amputamento de membros. Por sorte, um novo coração chegou naquele mesmo dia horas depois.
Quando acordei, disseram que só 3% do meu coração antigo estava funcionando. Eu era um milagre
Vitória Chaves da Silva
“Nadei, nadei e vou morrer no meio do caminho”
Atualmente, o terceiro coração de Vitória já está com 50% das funções comprometidas, ou seja, apenas metade do órgão está funcionando normalmente. No entanto, ela não pode passar por um novo transplante. Sua caixa torácica não suportaria novas cirurgias.
A jovem explica que os desgastes psicológicos provocados pelos constantes embates com a prefeitura de Luziânia estão afetando sua saúde. Ela diz que já chegou a tentar se suicidar, em janeiro deste ano. E, nesta semana, cogitou abandonar o tratamento.
Chega uma hora que cansa. Você vai a todos os cantos, pede ajuda e, para todo mundo, você está mentindo, está errada e tem que abaixar a cabeça. Não acho certo as coisas serem assim. Sinto que nadei, nadei e vou morrer no meio do caminho. Meu coração funciona só 50%. O restante já foi comprometido; penso que é de tanta raiva e nervoso que passo. Não estou fazendo meu tratamento em paz
Vitória Chaves da Silva
A mãe dela também afirmou que às vezes sente não ter mais forças para lutar. Quando a filha tinha 18 anos e estava às voltas com dificuldades cardíacas antes de seu segundo transplante, Cláudia Aparecida chegou a atear fogo ao próprio corpo, mas foi socorrida por Vitória, que chegou a se queimar.
Mãe de outras duas filhas com cardiopatia, sendo a mais nova de oito meses, Cláudia também é diagnosticada com Anomalia de Ebstein. A família sobrevive só com o R$ 1,1 mil pago pelo Benefício Assistencial à Pessoa com Deficiência (BPC).
A mãe de Vitória diz ser difícil conseguir emprego, porque precisa acompanhar o tratamento de saúde das filhas. Além disso, ela foi diagnosticada com um câncer na coxa, que já tem cerca de 16 cm.
“É muito difícil ver as portas se fechando e pensar que, se tivesse dinheiro ou nome importante, eu teria valor. Como não tenho, não sou ninguém”, lamenta Cláudia.
Diabetes em transplantados
A endocrinologista Geane Moron Beato, que atende em clínicas particulares de Cuiabá (MT), explicou que não é raro pacientes transplantados serem diagnosticados com condições similares ao diabetes tipo 2. De acordo com ela, a necessidade de uso de medicamentos específicos no pós-cirúrgico, como corticoides, explica a condição.
Esses remédios, conta a médica, fazem parte do protocolo pós-transplante. São eles que evitam que a imunidade do paciente reaja ao órgão transplantado e o ataque.
“Esses medicamentos imunossupressores acabam por dificultar a ação da insulina e da glicose no corpo. Isso pode gerar quadros de diabetes que são muito parecidos com a de tipo 2, mas que chamamos de diabetes pós-transplante”.
Em alguns transplantados, assim como Vitória, é preciso recorrer ao uso de insulina.
A endocrinologista ressaltou que o ideal é que a agulha das seringas de insulina seja utilizada apenas uma vez. No entanto, em casos de pacientes com dificuldades financeiras, é comum que reutilizem por mais vezes.
“No geral, vemos que usam até quatro vezes, é lógico que precisa ter uma técnica correta, cuidado na hora de pegar, não encostar em outros lugares. Mas, reutilizar por mais de três vezes, além do risco de infecção, tem a questão de que a agulha vai perdendo o fio e fica mais dolorida a aplicação. A recomendação geral é usar somente uma vez”, explicou.
O que diz a Prefeitura de Luziânia
Por meio de nota, a secretaria municipal de Saúde de Luziânia confirmou que o valor para TFD é de R$ 30 por dia, desde 2019, mas que Vitória e Cláudia só recebem R$ 75 cada por terem entrado na Justiça.
“Nos últimos anos, grande parte do orçamento municipal destinado ao TFD foi despendida com a referida paciente e sua acompanhante, a genitora Cláudia”, diz a pasta sem apresentar provas.
Quanto ao fornecimento de seringas, a secretaria informou que um protocolo do Ministério da Saúde preconiza a reutilização por até oito aplicações, descrito no Caderno de Atenção Básica.
“No caso do município de Luziânia, optou-se por fazer a reutilização das agulhas acopladas às seringas por até seis aplicações, a fim de oferecermos maior segurança aos nossos pacientes”, consta em nota.
A Secretaria Municipal de Saúde ainda alegou que Vitória e Cláudia são “agressivas”.
“Informamos que reiteradamente a paciente e sua genitora são agressivas e desacatam os servidores e profissionais da secretaria municipal de saúde. Informamos que se encontra em poder do Ministério Público de Goiás um dossiê, enviado em 2020, com todas as provas dos fatos. A Secretaria aguarda as apurações, desde o ano passado”, finaliza a nota.
Fonte: UOL
Créditos: Polêmica Paraíba