Opinião

Roberto Carlos, 80 anos. Um artista que sobrevive a rótulos políticos - Por Nonato Guedes

O “rei” Roberto Carlos completa 80 anos amanhã e ainda há quem esteja preocupado em carimbá-lo com rótulos políticos e ideológicos, apresentando-o como um artista de direita, que teoricamente agradou à ditadura por não ser um militante de esquerda. Em uma única vez ele disse ser de “direita”, numa resposta seca, sem comentário, em entrevista ao jornal Última Hora. Não há registro de engajamento de Roberto em manifestações políticas ou de ativismo político seu intercalando shows que percorreram o Brasil e o mundo até hoje. Há manifestações esparsas, simbólicas, expressas em letras de músicas que gravou, e o crítico Oscar Pilagallo diz mesmo que, ao contrário da impressão que às vezes passava, Roberto se incomodava com a reputação de alienado. Ao seu modo, protestava, às vezes, nas entrelinhas. O “rei” paira acima de todas essas discussões porque é o artista mais popular da música brasileira de todos os tempos e o que mais trouxe emoções para o grande público em tanto tempo.

Em meados dos anos 70, usou a seu favor o fato de o esquerdista e o aristocrático Luchino Visconti ter incluído uma música sua, “À Distância”, no filme “Violência e Paixão”, de 1974. “Se minha música fosse alienada, como explicar o fato de Visconti ter colocado “À Distância” como fundo musical de um filme altamente político?”. Pilagallo traduz, com sabedoria: “Bem, o filme não é altamente político, apenas tem um subtexto político. E, além disso, Visconti não passa atestado ideológico a Roberto Carlos apenas por  ter aproveitado uma canção de amor de muito sucesso na Itália, onde as simpatias políticas do compositor evidentemente são irrelevantes. De qualquer maneira, há uma linha de defesa mais consistente para Roberto Carlos, baseada em duas músicas lançadas no álbum de 1971: “Debaixo dos Caracóis Dos Seus Cabelos”, que ele fez para um Caetano Veloso exilado, e “Como Dois e Dois”, de Caetano, com clara mensagem antitotalitária, que ele gravou. Se elas não mudam a história de Roberto Carlos, ao menos lhe emprestam alguma nuança”.

Em “Debaixo dos Caracóis…”, Roberto deseja a volta do compositor baiano, que se refugiara em Londres após ser preso, junto com Gilberto Gil, logo depois do AI-5. “Um dia a areia branca/Seus pés irão tocar/E vai molhar seus cabelos/A água azul do mar”. E mais adiante: “Você olha tudo e nada/Lhe faz ficar contente/Você só deseja agora/Voltar pra sua gente”. Pilagallo diz que o recado estava dado, embora na época o público ignorasse que os tais caracóis fossem de Caetano, já que a censura não deixaria passar uma homenagem explícita a uma “persona non grata” ao regime. A história só seria conhecida duas décadas mais tarde. Já em “Como Dois e Dois”, a poesia, o romantismo e as ambiguidades da letra podem ter despistado a censura, mas não escondem a intenção inequívoca do autor – a expressão do título está conectada à resistência a qualquer tipo de totalitarismo. No Brasil de 1971, país igualmente de partido único, a Arena, celebrado como o maior do Ocidente, também tudo estava ótimo, “tudo certo como dois e dois são cinco”. Se alguém tinha alguma dúvida, Caetano explicitava na própria letra o que isso queria dizer: “Tudo vai mal, tudo, tudo, tudo, tudo”.

Sim, Roberto Carlos derrapou na tomada de posições envolvendo, por exemplo, a censura. Narra Pialagallo: “Em fevereiro de 1986, pouco mais de seis meses depois de o governo anunciar o fim da censura no país, o presidente José Sarney decidiu vetar a exibição no Brasil do filme Je Vous Salue, Marie, do franco-suíço Jean-Luc Godard. No filme, a Virgem Maria é uma estudante que trabalha num posto de gasolina e José um motorista de táxi. Ao saber da gravidez de Maria, José a acusa de traição. A história tem outros desdobramentos e níveis narrativos, mas, para efeitos da decisão presidencial, contou apenas a caracterização mundana de figuras centrais do cristianismo. O veto de Sarney dividiu a sociedade – de um lado, os defensores da liberdade da criação artística, de outro os paladinos do respeito aos valores religiosos. Os ânimos se acirraram e o cauteloso Roberto Carlos, que até então evitara se posicionar sobre questões candentes, entrou no debate com uma mensagem de apoio ao presidente José Sarney.

A atitude de Roberto Carlos indignou muita gente, inclusive Caetano Veloso. “O telegrama de Roberto Carlos a Sarney, congratulando-se com este pelo veto a Je Vous Salue, Marie, envergonha nossa classe”, escreveu. Salvo o artigo de Caetano, a crítica a Roberto diluiu-se em meio às discussões, até porque ele não foi o único artista a apoiar a censura. Vinte anos mais tarde, Roberto estaria no centro de um caso de natureza semelhante. Em 2006 chegou às livrarias a biografia não autorizada “Roberto Carlos em Detalhes”, de Paulo Cesar de Araújo. Roberto Carlos moveu um processo contra Araújo e a editora Planeta, responsável pela publicação, sob a alegação de que houvera invasão à sua privacidade. O caso foi encerrado com um acordo entre as partes. Escritores e intelectuais vieram a público para criticar o desfecho. A reação de maior repercussão foi a de Paulo Coelho, que se disse chocado com “a atitude infantil” de Roberto Carlos, “como se grande parte das coisas que li na imprensa justificando a razão da invasão da privacidade já não fosse mais do que conhecida por todos os seus fãs”.

Pilagallo arremata: “As proibições a Je Vous Salue, Marie e a Roberto Carlos em Detalhes têm aspectos comparáveis, mas há duas diferenças importantes. Do ponto de vista institucional, a censura ao filme foi exercida pelo Estado, enquanto a censura ao livro seria uma “censura togada” para usar a expressão do biógrafo Fernando Morais, em referência ao fato de o acordo, lesivo à liberdade de expressão, ter sido obtido com a mediação de um juiz. E, do ponto de vista de Roberto Carlos, se em relação ao livro ele advogou em causa própria, no caso do filme agiu por convicção religiosa. Se havia uma acusação que não lhe podia ser feita era a de incoerência: não era daquela época que suas composições tratavam de temas espirituais”. Roberto Carlos foi o primeiro artista brasileiro a colocar o nome de Jesus Cristo nas paradas de sucesso, e pagou pelo pioneirismo. Um deputado estadual de Pernambuco chegou a pedir seu enquadramento na Lei de Segurança Nacional. Não deu em nada, claro.

Roberto Carlos é essencialmente um artista. O artista mais popular da música brasileira de todos os tempos. Nas palavras de Chico Buarque de Holanda, “Roberto é o mais moderno dos cantores românticos latinos”. Suas composições têm sido regravadas pelos mais diferentes intérpretes, em sucessivas gerações. Trata-se de um fenômeno no meio artístico, e isto é quase uma unanimidade, mesmo entre os que não gostam dele. Saúde, “rei” Roberto Carlos!

Fonte: Nonato Guedes
Créditos: Os Guedes