Ladrão de passaporte

Rubens Nóbrega

1969. Depois de um dia inteiro entregando ou vendendo jornais nas ruas de Paris, sob frio de rachar, Francisco apurava os trocados e partia para uma turnê pelos bares e cafés mais frequentados por turistas brasileiros na capital francesa.

Não para conversar, conhecer ou rever patrícios, mas para furtar-lhes os passaportes, coisa que habitualmente fazia em dupla com o amigo e conterrâneo Fernando, outro paraibano que se exilara em Paris para fugir da repressão da ditadura.

Uma atividade assim tão inusitada quanto perigosa renderia, aqui no Brasil, dezenas ou centenas de fugas mais tranqüilas ou menos arriscadas para o exterior de muita gente boa gente caçada e até então ainda não alcançada pelas garras do arbítrio.

A maioria dos beneficiários da arriscada ousadia jamais conheceu pessoalmente ou sequer agradeceu ao jovem Francisco, líder estudantil que depois de cassado fugira de João Pessoa para São Paulo e de lá para a França.

Fugiu para não ser preso, encarcerado, torturado e quem sabe até eliminado de vez, protagonizando o mesmo trágico e estúpido roteiro que exterminara tanto da nossa juventude idealista e determinada em livrar o Brasil daquela absurda truculência.

Olhando pra trás e revendo hoje as cenas da sua curiosa missão em Paris, onde viveu por quase dez anos, Francisco mostra que roubar passaportes não era tão complicado ou nem tão arriscado assim. Ele dá detalhes do ‘modus operandi’:

– Uma vez no café, a gente ficava reparando quem chegava. Se chegava falando português, imediatamente começávamos a vigiar onde o freguês iria pendurar o casaco ou capa. Daí, eu e Fernando nos dirigíamos ao mesmo cabide e fazíamos de conta que estávamos pendurando os nossos casacos e discretamente vasculhávamos os bolsos dos outros, terminando por encontrar o objeto do nosso interesse.

Ajudava a manha, penso eu, o fato de as peças serem fabricadas com tecidos grossos, forrados, pesados, em geral de cor escura. Com tanto volume protegendo-lhes a desenvoltura das mãos, Francisco e Fernando sentiam-se à vontade para cumprir a tarefa. Sim, porque essa era uma das incumbências de militante que lhes ordenava a organização a que pertenciam.

Os passaportes ‘reunidos’ por Francisco se juntavam aos ‘coletados’ pelo amigo Fernando e enviados para o Brasil, providenciava de que se encarregava Ana Maria, filha de tradicional família do baronato paulistano, a quem cabia fazer as remessas que vez por outra eram organizadas pelo hoje senador Aloísio Nunes (PSDB-SP).

‘Perfeitamente legalizados’

Aos que perdiam o passaporte daquela forma restava fazer um boletim de ocorrência na delegacia mais próxima ou passar pela embaixada do Brasil e providenciar um liberatório qualquer junto às autoridades locais. Já os destinatários dos passaportes furtados ganhavam a chance de poder sair do Brasil ‘perfeitamente legalizados’, sob nova identidade, para escapar com vida e tentar sobreviver lá fora até um dia em que a democracia fosse restabelecida de alguma forma entre nós.

Francisco acredita que não havia dificuldade de utilizar os passaportes roubados porque as alterações feitas no documento para incorporar o novo titular, de tão bem feitas, raramente eram notadas por algum funcionário de consulado, da Polícia Federal ou dos aeroportos de onde embarcavam os procurados pelo regime. Mas, como fazer chegar os salvo-condutos a esses companheiros, camaradas que Francisco nem Fernando sequer conheciam, na maioria das vezes?

Só veio a ter uma ideia de como se dava o transporte da ‘mercadoria’ no dia em que foi pessoalmente entregar a sua ‘colheita’ a Ana Maria. Para sua enorme surpresa, deu de cara no apartamento da moça, já de saída, com ninguém menos que João Havelange, então presidente da hoje finada CDB (Confederação Brasileira de Desporto, antecessora da CBF), dona da Seleção Brasileira de Futebol.

“Notei que ele segurava uma caixa de chocolates. Não grande, tamanho razoável. Na hora, saquei: vai levar o presente para a família de Ana Maria, de quem é amigo. Os passaportes iam dentro daquela caixa, que entraria e sairia facilmente de qualquer avião no mundo, dado o prestígio do portador. Quem, no Brasil, seria doido de vistoriar a bagagem ou algo que Havelange carregasse nas mãos?

Ninguém. O homem era prestigiadíssimo pelos milicos”, avalia Francisco.

De fato, patrão da Canarinha de Pelé, Gerson e Rivelino, Havelange foi um dos mais valiosos colaboradores dos militares naquele período, comandando a Seleção que fez da Pátria de Chuteiras tricampeã do mundo, título que rendeu excelente marketing e cortina de fumaça à violência praticada sob o governo do general Garrastazu Médici. Portador mais insuspeito, impossível.

Uma breve apresentação

O Francisco dessa história vem a ser o Professor Francisco Barreto, ex-secretário de Estado e de João Pessoa, cidade da qual também foi vereador. Tudo isso ele deve narrar com a mais completa riqueza de detalhes quando cantar, em livro, a sua canção do exílio. Vem por aí.

A obra deve reservar um capítulo especial para Fernando, Fernando Falcão, o músico fenomenal (já falecido), pessoa admirada por todos de sua geração. Pra vocês terem uma ideia, lembra Barreto, o cara montou a trilha sonora de La Luna, um dos mais polêmicos filmes do consagrado diretor de cinema italiano Bernardo Bertolucci.