Os fabricantes da vacina russa Sputnik V fazem intenso lobby político para pressionar a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) a liberar o uso emergencial do imunizante. A pressão vem incomodando os diretores da agência, diante das ofensivas múltiplas.
Lobista escalado pela empresa no Brasil, a União Química, o ex-deputado federal pelo PSD e ex-governador do DF Rogério Rosso mantém interlocução direta com deputados e senadores –em especial os do centrão, espaço político onde esteve quando foi parlamentar– e com o governo da Bahia, que assinou um memorando de entendimento com os russos ainda em agosto.
Além disso, Rosso já esteve em reuniões na Anvisa em pelo menos duas ocasiões, representando a União Química, onde é formalmente diretor de Negócios Internacionais.
À Folha, o diretor-presidente da Anvisa, Antonio Barra Torres, apontou a pressão política em curso: “A Anvisa tem 22 anos. Nesses 22 anos, pouquíssimas vezes houve necessidade de tamanha movimentação política. E é necessário isso? Não é, porque no final quem define são os técnicos.”
Em 16 de outubro, Barra encontrou-se com Rosso na sede do órgão. Depois, o ex-deputado participou de uma reunião técnica com diretores, por meio de videoconferência, para tratar do pedido de uso emergencial da Sputnik V no Brasil.
Por falta de documentos básicos e de testes clínicos na fase 3, a Anvisa rejeitou inicialmente o pedido.
Um contato frequente de Rosso no Congresso é o líder do governo Bolsonaro na Câmara, deputado Ricardo Barros (PP-PR). O parlamentar vem pressionando a Anvisa a flexibilizar as regras para liberação de vacinas emergenciais.
Um gesto concreto de Barros foi protocolar na Mesa Diretora da Câmara, na quarta-feira (3), um projeto de decreto legislativo com a proposta de anular a exigência da fase 3 de testes em humanos, feita até então para a liberação de uso emergencial.
A Anvisa também detectou movimentos do deputado no sentido de buscar alterações legislativas em MPs (medidas provisórias) para escantear a agência na análise de imunizantes.
No começo da noite do mesmo dia, a Anvisa comunicou que decidira alterar as regras. A fase 3 a ser apresentada pode ter sido realizada em outros países, o que beneficia diretamente a Sputnik V.
Barra Torres afirmou que, quando esteve com Rosso, o ex-deputado ainda não atuava no setor, ou seja, ainda não haveria atuação em prol da Sputnik.
Rosso afirmou à Folha que não tratou da vacina no encontro com o presidente da Anvisa: “Nunca fui à Anvisa tratar de Sputnik.” Segundo o ex-deputado, a participação posterior numa reunião técnica do órgão se deu apenas como “ouvinte”.
A União Química, após tratativas com o Fundo Soberano Russo, enviou uma equipe a Moscou, para conhecimento da tecnologia de produção da vacina, entre 27 de setembro e 3 de outubro, segundo um documento entregue pela empresa ao STF (Supremo Tribunal Federal) –antes, portanto, da reunião com o presidente da agência. Rosso é diretor desde março de 2019.
Na reunião técnica, ele não ficou calado, apenas ouvindo, segundo técnicos que conversaram com a reportagem. O ex-deputado costuma dizer que cumprirá as exigências de documentação que faltam. Passados os encontros, adota uma postura crítica em relação à Anvisa, o que incomoda o corpo técnico do órgão.
Rosso é ainda o principal interlocutor com o governo da Bahia, do PT, o primeiro a enxergar viabilidade na Sputnik V. As conversas do ex-deputado são com o secretário estadual de Saúde, Fábio Vilas-Boas.
“Rosso tem feito um papel fundamental. É a pessoa certa no lugar certo. Ele faz a interface comigo, com a diretoria da União Química e com deputados e senadores”, afirma o secretário.
“O lobby dele é aberto e ético. As conversas são sobre andamentos, documentos e informações, para que se possa fazer os movimentos mais assertivos, sem constrangimento à Anvisa ou ao governo federal.”
No mesmo dia em que a Anvisa flexibilizou as regras para liberação emergencial de vacinas, Vilas-Boas se reuniu com Torres na sede da Anvisa. O encontro está registrado na agenda do presidente do órgão.
Torres também esteve com o presidente Jair Bolsonaro, no Palácio do Planalto, no último dia 27. A Sputnik V, que passou a ser encampada pelo governo federal, diante da falta de vacinas, foi um dos assuntos tratados.
“O presidente me solicitou uma atualização do quadro regulatório das vacinas. Falei sobre as quatro vacinas que têm ensaios clínicos na fase 3 e citei que havia a questão da Sputnik, para a qual havia documentos pendentes. O presidente não falou nada. Eu expus ao presidente”, disse Torres à Folha.
No último dia 22, o presidente da Anvisa defendeu, em ofício ao STF, a realização da fase 3 no Brasil como condição fundamental para a liberação emergencial de uma vacina e para a segurança e eficácia de um imunizante, como revelou a Folha nesta quinta (04).
Para Torres, “ninguém aqui na Anvisa tem apego ao que escreveu”. “Se for necessário mudar para o bem do processo, vamos mudar.” A flexibilização das regras foi gestada nos últimos dez dias, segundo ele.
O presidente afirmou ainda que o perfil dos testes para a vacina, feitos na Rússia com 40 mil pessoas, pode vir a ser um problema, dadas as diferenças étnicas, demográficas e epidemiológicas em relação ao Brasil. “Por isso, a Anvisa tem 30 dias para essa análise. Podemos fazer, e no fim colocar o nosso CPF.”
Para Rosso, o que ocorre não é pressão, mas uma “corrida pela vida”. Ele confirma que tem conversado com seus “amigos e colegas de Câmara”, independentemente de partidos.
“Como fui líder na Câmara por muito tempo, não há um com quem converso mais ou menos. Tenho muito amigo parlamentar, de longa data, que manifestam a preocupação de suas bases com a vacina”, disse o ex-deputado.
O líder do governo Bolsonaro confirma os contatos com Rosso, mas diz não ser ele o único interlocutor na discussão sobre as vacinas.
“Ele cuida da Sputnik. Há conversas com outros atores do setor, a exemplo do que ocorre com outros parlamentares. Todo mundo aqui tem os seus relacionamentos”, afirmou.
Fonte: Polêmica Paraíba
Créditos: Folha de S.Paulo