1. RECONVEXO
As letras das canções de Caetano Veloso são muitas vezes enigmáticas. Há a necessidade de conhecer o contexto histórico em que foram concebidas para ter uma melhor compreensão da mensagem contida na música. RECONVEXO foi composta para ser lançada por sua irmã Maria Bethânia, em 1978. A motivação maior da composição foi sua indignação com as críticas à nossa cultura, feitas pelo jornalista Paulo Francis, residindo naquela época em Nova York. Um cara de direita que já naquele tempo exercia uma postura “vira latas”.
“Eu sou a chuva que lança a areia do Saara/sobre os automóveis de Roma”…”Quem não seguiu o mendigo João Beija-Flor/quem não amou a elegância sutil de Bobô/quem não é recôncavo e nem pode ser reconvexo”.
Foi composta numa manhã de sábado na cidade de Roma, quando ele estava acompanhado de dois amigos italianos e perguntou a razão de tantos carros cobertos de areia. Em resposta lhe afirmaram que eram areias do deserto de Saara trazidas pelo vento. Aí se afirma, de forma metafórica, uma reprimenda à ideia de que a cultura europeia não sofre influências do que vem além de suas fronteiras.
Vale-se, então, dessa observação, para passar a defender a cultura brasileira, formada por várias e importantes intervenções vindas de fora do nosso território. E registra como símbolo de nossa terra a sereia Iara, originada da lendária Amazônia, associando-a à “matriarca da Roma Negra”, como era chamada a capital da Bahia, na década de vinte do século passado, por Aninha do Afonjá, uma Ialorixá afrodescendente. Queria dizer com isso que Salvador era a metrópole com maior número de negros em nosso país. Expressa, portanto, as influências indígenas (a Amazônia original, ainda não civilizada) e africanas, nossos primeiros ascendentes não europeus.
E faz sarcasmo com o jornalista Paulo Francis, a quem chama de “careta”, que não consegue enxergar nossos valores culturais, porque ficou cego pela idolatria ao povo americano.
Segue citando personagens que transmitiram valores culturais para nosso povo, como, por exemplo, o compositor e guitarrista francês, Henry Salvador, que morou no Rio de Janeiro, sendo, inclusive, um dos precursores da Bossa Nova. Fala no famoso bloco carnavalesco Olodum, que se tornou um atrativo turístico e que movimenta o Pelourinho encantando todos que o visitam. Refere-se ainda a Gitá de Gogoya, numa alusão à musica Gitá de Raul Seixas e à canção folclórica Fruta de Gogoya, gravada por Gal Costa. Quem desconhece ou ignora isso, não tem autoridade para falar mal da nossa produção cultural.
Homenageia o preto norte americano com brincos de ouro na orelha, representando a raça negra verdadeira, que tanto influenciou a nossa música. Paulo Francis, só tem condições de ver a cultura americana moderna, não aquela que nasceu da origem africana. Quem assim se comporta não pode ser considerado. Torna-se um elemento descartável no universo cultural.
Desvaloriza nossa cultura quem nunca teve a oportunidade de rezar uma novena, tipo a que era protagonizada por Dona Canô, sua mãe, diz Caetano. Quem não respeita a performance do coreógrafo Joãozinho Trinta, famoso por suas apresentações nos carnavais cariocas. Ou quem não conheceu Dodô, o morador de rua de Salvador, que apesar de sua pobreza, era admirado pela maneira elegante de se vestir.
E finaliza esnobando o brasileiro americanizado, Paulo Francis, ao declarar que, em não sendo baiano, “recôncavo”, jamais poderá também ser “reconvexo”. Revela-se em sua personalidade, com ênfase, a falta de brasilidade, que o credenciaria a analisar e criticar nossa sociedade, nossos intelectuais, nossos artistas e nossos políticos. Transformou-se num elemento estranho à nossa cultura.
Fonte: POLÊMICA PB
Créditos: RUI LEITÃO