O debate sobre aborto move paixões e, aqui no Brasil, orbita em torno de quais leis ou regras devemos adotar. Abortistas e pró-vida concordam em um ponto: a legislação é o que estabelece como a nossa sociedade tratará a questão no dia-a-dia. A última jihad foi entre favoráveis e contrários à notificação da polícia pelo médico nos abortos em caso de estupro. São debates importantes para as convicções e a consciência de quem os faz, mas irrelevantes diante da realidade brasileira.
Em São Paulo, a Justiça demorou 3 anos para perceber que uma mulher acusada criminalmente de aborto não era a mãe do feto. Mais apegados à vaidade do que às provas técnicas, promotores, defensores e juízes usaram um processo judicial para batalha ideológica sem se importar com o básico: uma pessoa não pode abortar o filho de outra. Foram necessários 3 desembargadores para colocar fim ao espetáculo.
Fosse ficção, confesso que acusaria o enredo de ser forçado demais, mas realmente aconteceu na cidade de Araraquara. A comédia – ou tragédia – de erros foi encerrada pela 14a Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo esta semana, num julgamento que necessariamente envolve 3 desembargadores. É importante lembrar que eles só precisaram atuar neste caso porque, durante 3 anos, com idas e vindas, ninguém tinha atentado para o fato de que o DNA do feto não é compatível com o da acusada.
Um julgamento do TJ-SP sempre sai caro, se bobear, bem mais caro do que o exame de DNA. Sem levar em conta todos os funcionários necessários para dar andamento a um processo, fiquemos apenas no salário dos julgadores. O desembargador relator recebeu, no mês de agosto, salário bruto de R$ 73.890,60. Os outros dois desembargadores envolvidos receberam no mesmo mês salários brutos de R$ 52.474,09 e R$ 51.157,75.
“Conquanto o trabalho pericial realizado em (nome da ré) tenha revelado o abortamento (fls. 47), salta aos olhos que sua análise genética não confere com a do feto relacionado ao caso, encerrando, assim, a exclusão de maternidade, nos termos do relatório de análise de DNA: ‘Os resultados obtidos e expressos na tabela anteriormente apresentada oferecem condições para que se possa concluir pela EXCLUSÃO DE MATERNIDADE de (nome da ré) em relação ao feto referente ao Laudo de Aborto nº 389998/2017 ‘(fls. 56/59)”– diz o relator no acórdão que extinguiu o processo.
O que aconteceu lá atrás, em 2017? O início de um processo clássico de ativismo judicial, o mais caro que existe no Brasil, em que a ideologia está acima da técnica, que é função do agente público. Abortistas e pró-vida tentam, na verdade, obter brechas judiciais para sua visão de mundo, o que não é função deles. Como há anos algumas iniciativas do gênero acabam prosperando e passam a ter força de lei (p.ex.: casamento entre pessoas do mesmo sexo, criminalização da homofobia e prisão em segunda instância), substitui-se o Poder Legislativo pelo heroísmo nas carreiras jurídicas.
Além de ser caríssimo fazer cabo de guerra ideológico com um processo, é extremamente ineficiente. Acabamos, no final das contas, com uma legislação capenga e uma prestação jurisdicional que equivale a uma máquina de moer gente. Em vez de servir para pacificar conflitos, o Estado passa a colocar a vida do cidadão a serviço das convicções pessoais de funcionários concursados.
Falamos muito do ativismo judicial nos tribunais superiores, mas ele é esperado, são cargos políticos. A partir da segunda instância, todos são indicados por políticos e sabem que têm a função de, além de aplicar a técnica, servir como sistema de freios e contrapesos entre os três poderes. Como a comunidade jurídica é muito autocentrada e autorreferente, promotores, procuradores, advogados públicos, defensores e policiais civis passam a imitar o comportamento político.
Como o caso do aborto é quase surreal, tive a paciência de ler todas as 507 páginas dos dois processos abertos: o de aborto consentido e o do habeas corpus. Desde a delegacia, em 2017, se sabia que a acusada não era mãe do feto. Mesmo assim, a polícia denunciou, o Ministério Público foi favorável e o juiz de 1a instância aceitou a denúncia. O defensor dativo do primeiro processo não mencionou na primeira defesa que sua cliente não era a mãe do feto em questão. A defensora pública do segundo processo mencionou, mas sua primeira alegação era a inconstitucionalidade de penalização do aborto.
Se você sente que algo está errado na Justiça brasileira mas não consegue identificar exatamente, acompanhe a cronologia deste caso, que parece novela. Desde a insistência em processar quem não era a mãe do feto até a desistência em encontrar a verdadeira mãe, foram dezenas de servidores públicos envolvidos num trabalho completamente sem sentido, pago regiamente por nós. E, de quebra, acompanhe os efeitos do processo na vida da ré, uma moça de 20 anos de idade, que fazia um estágio em telemarketing para sustentar as duas filhas pequenas.
Como tudo começou
No 17 de outubro de 2017, um funcionário que trabalha na Estação de Tratamento de Esgoto de Araraquara, que fica na zona rural da cidade, observou algo estranho na primeira grade de filtragem. Parecia ser um feto humano, com o tamanho aproximado da palma de uma mão e que já tinha formados a cabeça, olhos, boca, braços e pernas. O funcionário recolheu o feto e o guardou na geladeira. A Polícia Militar foi acionada imediatamente. Chamou-se a Polícia Civil para periciar. Infelizmente, não era uma brincadeira de mau gosto, era um feto.
Foi imediatamente pedido pela Polícia Civil o exame necroscópico para determinar o tempo de gestação, a possibilidade de saber se era um aborto espontâneo ou provocado e a possibilidade de coletar DNA do feto para, caso ocorresse a identificação da mãe, utilizar como prova. Até aí, tudo perfeito.
Quando chegaram à casa da avó dela, pela manhã, a moça ainda estava dormindo. Foi acordada e informada de que precisaria ir à delegacia, sem mencionar por que nem que poderia ir acompanhada, pedir um defensor ou que tem o direito de permanecer calada. Quando fizeram isso, os policiais já haviam vasculhado as redes sociais da moça e ido antes ao local de trabalho dela, onde verificaram que ela estava afastada por razões de saúde.
Os dejetos da casa da acusada vão para aquela Estação de Tratamento de Esgoto? Seria possível tecnicamente que um feto saído da casa da acusada chegasse praticamente inteiro à Estação de Tratamento de Esgoto? Há outra forma de colocar um feto no local onde foi encontrado sem ser a rede de esgoto? Essas perguntas jamais foram feitas.
A Confissão e o DNA negativo
A Delegacia da Mulher chamou representante do Centro de Referência da Mulher para acompanhar o depoimento, que não foi gravado. Ali, todos tinham a obrigação de informar a depoente que ela tem o direito de permanecer calada, mas não há nenhum registro de que tenha sido feito. É apenas o segundo tropeço e não tem relação com ter pena ou não da moça ou ser leniente com aborto: uma confissão nessas condições é ilegal e acaba anulada como prova na Justiça, ou seja, é trabalho malfeito. Tudo a partir deste ponto nem poderia ter existido e não tem utilidade judicial, mas nós pagamos e teve consequências nas vidas dos envolvidos.
A moça confessou ter feito um aborto por desespero, alegou criar duas filhas sozinha e não ter como sustentar um terceiro. Relatou que estava grávida e, na noite do dia 16 de outubro de 2017, havia utilizado um medicamento abortivo e que na manhã seguinte teve uma sensação estranha, foi ao banheiro e teve um sangramento intenso. Foi até a casa da mãe, disse ter sofrido um aborto espontâneo e foi levada por ela ao hospital, onde foi atendida. Imediatamente foi determinada a realização de exames periciais e coleta de DNA pelo Instituto Médico Legal.
No mesmo dia, a avó, uma dona-de-casa de 74 anos também foi chamada à delegacia para depor e praticamente repetiu o que disse a mãe da acusada. A família sabia da gravidez, iam ajudar, a moça relatou um sangramento, foi para o hospital e disseram ser aborto espontâneo. No depoimento da avó também não consta que a acusada tenha confessado a ela ter feito o aborto. E nesse depoimento há uma inconsistência da qual não se fala no processo: a avó alega que o sangramento foi dia 16, não 17.
Dois meses depois que a mãe e a avó já tinham prestado depoimento, em 22 de dezembro de 2017, chegou o Laudo do Instituto de Criminalística: a acusada NÃO era mãe do feto encontrado.
A partir desse momento, há diversos caminhos que podem ser seguidos, mas dentro de uma realidade: são dois casos diferentes. A origem do feto encontrado precisaria ser investigada. A confissão da acusada, que poderia ser verdadeira ou falsa, precisava de um conjunto de provas para que se tornasse uma ação judicial. Mas nada disso foi feito.
A entrada do Ministério Público
Depois do laudo dizendo que o DNA do feto não bate com o da acusada, o processo ficou parado durante 3 meses. No final de março, a Polícia Civil decidiu intimar a moça para novo depoimento, marcado para 23 de abril de 2018, às 15h15 da tarde. O prazo da investigação estava esgotado, mas a polícia pediu mais tempo e o Ministério Público concedeu.
Em 25 de junho de 2018, a Polícia Civil incluiu nos autos o prontuário médico do hospital que atendeu a acusada no fatídico 17 de outubro. Novamente foi pedido mais um mês de prazo para as investigações, o Ministério Público concordou e o juiz também.
“Novas” Testemunhas
Os funcionários que encontraram o feto só foram ouvidos pela Polícia Civil no dia 7 de agosto de 2018, quase 10 meses após o fato. Os três fizeram depoimentos breves e coincidentes. Um funcionário que trabalha há 26 anos na empresa de tratamento de esgoto afirma que viu algo que parecia feto na esteira que leva os dejetos para a primeira filtragem, chamou a auxiliar de limpeza para ajudar a entender se era isso mesmo que ele via e ela então vestiu uma luva para tirá-lo de lá.
Foi necessária a remoção porque não há como paralisar as operações de uma hora para outra e, se ela não fosse feita, o feto seria dilacerado. O coordenador do turno foi chamado e, ao chegar, os funcionários já haviam colocado o feto em um recipiente de isopor na geladeira em que se armazenam as amostras de esgoto. A polícia foi chamada.
Como o feto chegou até lá? Há câmeras no lugar? É possível que alguém tenha colocado o feto na esteira ou necessariamente ele chegou pela rede de esgoto? Essas perguntas jamais foram feitas. A Polícia Civil pediu de novo mais 30 dias para investigar, o Ministério Público concordou e o juiz também.
No dia 2 de outubro de 2018, aparece um documento curioso no processo, a intimação pela Polícia Civil do “genitor” do feto. Investigaram então quem colocou o feto na esteira? Não, foram atrás do namorado novo da acusada, que não era mãe do feto, de acordo com o exame de DNA. Mesmo assim, ele constou como “genitor” no processo.
Num depoimento breve mas bombástico, o rapaz de 19 anos que não cursou o Ensino Médio disse que conheceu a acusada numa balada e não tinham nada sério. Formalmente, ele é casado. Relatou que, quando soube da gravidez, se prontificou a casar com a moça mesmo sem gostar. Depois, desistiu mas se prontificou a assumir e ajudar a cuidar do bebê. A acusada teria dito a ele que iria abortar. O rapaz relatou ter sido contra, mas não conseguiu impedir e cortou completamente o contato quando ela lhe enviou uma foto de um feto abortado em um vaso.
A foto não está no processo. Foram pedidos novos adiamentos e o relatório final da Polícia Civil ficou pronto somente em janeiro de 2019, 14 meses após o crime. Há uma inconsistência: a data em que o medicamento abortivo teria sido tomado coincide com o depoimento da avó, mas não com o da acusada, da mãe nem com o Boletim de Ocorrência. A delegada responsável mencionou textualmente que o exame de DNA indicou que a acusada não é a mãe do feto e encaminhou ao Ministério Público.
Esqueceram do feto
O Ministério Público, diante da conclusão do inquérito, resolveu esquecer essa história de feto achado na Estação de Tratamento de Esgoto e ficar só com os depoimentos incriminando a acusada por aborto. Ela não era a mãe do feto, mas havia confessado na polícia ter feito um aborto.
O texto da acusação é fortíssimo e contrasta fortemente com a fragilidade das provas colhidas. O laudo pericial que, segundo o promotor, atesta aborto, não é conclusivo ao dizer que foi provocado. Em 31 de janeiro de 2019, a acusada foi informada que havia sido denunciada pelo Ministério Público e seria julgada no Tribunal do Júri. Tinha 10 dias para responder por escrito às acusações.
A entrada do advogado de defesa
Somente no dia 20 de fevereiro de 2019, 17 meses depois que a polícia foi à sua casa, a acusada teve direito a uma defesa técnica. Nessa altura, já tinha prestado inúmeros depoimentos, teve a vida pessoal, afetiva e profissional reviradas e até a mãe e o ex-namorado tinham ido à polícia. Foi nomeado um defensor dativo, advogado que supre a assistência judicial a quem não tem condição de pagar.
No papel, todos são iguais perante a lei. Se você chegou até aqui, já sentiu o quanto uns são mais iguais que os outros.
Na nomeação do advogado houve um erro. Duas semanas após a nomeação do primeiro, se nomeou um segundo, que passou a ser o representante da acusada. Por iniciativa própria, o primeiro advogado nomeado, que já havia protocolado a primeira defesa, foi conversar com o colega para que lhe devolvesse o caso. Assim foi feito. A audiência para decidir se o Tribunal do Júri aceitaria ou não julgar o processo foi marcada para as 14h26 do dia 25 de abril de 2019. Foram chamadas a comparecer a acusada, o ex-namorado, a mãe, a avó e uma outra testemunha nomeada pela defesa.
Acordo de Pena Alternativa
Em 25 de abril de 2019, o Ministério Público propôs desistir da acusação de ocultação de cadáver e suspender por 3 anos o processo por aborto mediante a pena alternativa de prestação de serviço comunitário por 6 meses no Centro de Referência da Mulher de Araraquara. A defesa aceitou. O centro é o mesmo que esteve presente no primeiro depoimento feito na delegacia, aquele em que a acusada não foi informada de que poderia permanecer calada.
Havia também 3 outras condições a cumprir: proibição de frequentar determinados lugares, proibição de se ausentar de Araraquara sem comunicar o juiz e comparecer mensalmente ao juízo para informar e justificar suas atividades. Tudo foi aceito.
Ocorre que não havia nenhum acordo prévio do Ministério Público com o tal Centro de Referência. Quando a moça chegou lá, foi informada que não havia vaga para a prestação do serviço. O defensor pediu então que o Ministério Público trocasse a pena de prestação de serviço naquele local específico por cursos de qualificação e comprovação de vínculo de trabalho, já que havia duas meninas pequenas para sustentar.
O Ministério Público não aceitou a troca da prestação de serviço por cursos de qualificação ou trabalho, alegando que não havia prova de que o Centro de Referência não tinha mais vagas e que era importante a pena para que a ré repensasse sua conduta. O juiz concordou e mandou dar uma advertência formal à ré para que cumprisse o acordo judicial e que marcasse seus comparecimentos mensais. Ela teve de ir ao fórum assinar o documento no dia 17 de junho de 2019.
No mesmo dia em que advertiu a ré, o juiz resolveu comunicar o tal Centro de Referência que ele era parte de um acordo judicial e então precisaria providenciar uma vaga para o cumprimento da sentença. Isso não havia sido feito antes, quando ela apareceu lá procurando a tal vaga.
Após a comunicação formal, a prestação de serviços começou:
Os honorários sumiram
O advogado que defendeu a ré é um defensor dativo, profissional que a OAB disponibiliza, em convênio com a Defensoria Pública, para atender pessoas que não têm como pagar advogado. Os honorários são pagos ao final do processo. Neste, houve um erro do preenchimento da guia e o defensor iria receber R$ 0, tendo de dar 11% à Defensoria Pública. Ele teve de pedir formalmente a revisão, dentro do processo. A correção foi providenciada.
A chegada da pandemia
Uma das condições da suspensão do processo por aborto era ir mensalmente ao juízo prestar contas das próprias atividades. A pena alternativa estava sendo cumprida na forma da lei mas, a partir de março deste ano, o pessoal do fórum entrou em home-office, então não foi mais necessário cumprir esta medida.
Este é o último documento do processo que foi iniciado com o encontro do feto na Estação de Tratamento de Esgoto. O feto foi completamente esquecido pela Polícia Civil, pelo Ministério Público e pelo próprio juiz.
Segundo processo: habeas corpus ou libelo abortista?
Já vimos que o ativismo judicial pró-vida, que pesou a mão na pena de alguém acusada de aborto com provas muito frágeis, terminou por não punir os responsáveis por abandonar um feto no esgoto. Em 13 de julho deste ano, o Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher da Defensoria Pública de São Paulo resolveu pedir um habeas corpus com base em constrangimento ilegal, o que liberaria a ré de cumprir o restante da pena e trancaria definitivamente o processo.
Dessa vez foi mais rápido. A Defensoria Pública elencou as diversas falhas e vícios do processo, ignoradas pelo Ministério Público, pelo defensor nomeado e pelo próprio juiz do caso. Ao mesmo tempo, a peça tenta conseguir provar algo que não é discussão do caso: a inconstitucionalidade de processo penal por aborto.
Neste caso, o ativismo jurídico não causou danos à pessoa atendida por dois motivos: a defensora estava do mesmo lado que a ré e o trabalho também era muito forte na parte técnica. Já na primeira página, todo o teatro conduzido por anos é demolido.
Na página seguinte, começa a tese de inconstitucionalidade da criminalização do aborto que, embora possa ser a opinião pessoal da defensora, não é julgada pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. O controle de constitucionalidade compete ao Supremo Tribunal Federal.
Apenas depois de 11 páginas da mais ampla análise sobre escolha da mulher, documentos internacionais e ilegalidade da criminalização do aborto é que começa a defesa efetiva, para a qual foram dedicadas 4 páginas.
O Ministério Público, as provas e o feto
No dia 6 de agosto deste ano, o Ministério Público reconheceu por vias transversas que não tem certeza da culpa da ré, mas não concordou com o trancamento do processo. A argumentação começa questionando a ideia de falar que processo criminal por aborto é inconstitucional e se apega a uma tecnicalidade: o uso de um habeas corpus para tratar de um acordo já formalizado, algo bem pouco usual.
É uma curiosidade que poucas pessoas imaginariam ver: a condenação já foi feita, mas quem acusa sustenta que os fatos não estão “sedimentados, firmes, indisputados”, como nós, leigos, imaginamos que seja necessário para condenar alguém criminalmente. “São controversos, dependentes de melhores, cuidadosos e aprofundados esclarecimentos”, diz o promotor que não pediu nenhum outro esclarecimento nem à ré nem sobre o feto achado na Estação de Tratamento de Esgoto.
O desfecho
A sessão de julgamento foi marcada para o dia 24 de setembro deste ano, feita de forma virtual devido à pandemia de coronavírus. Dez dias depois, 3 desembargadores não precisaram de mais de 4 páginas para colocar fim ao imbroglio.
As 11 páginas que a Defensoria Pública utilizou para defender que é ilegal processar criminalmente por aborto foram respondidas com um parágrafo: se quiser debater o tema, faça em outra ação, não tem nada a ver com essa.
Segundo os 3 desembargadores, os documentos que embasaram o fechamento de um acordo de pena alternativa no Tribunal do Júri não são suficientes nem para abrir uma ação penal. Em dois parágrafos, o TJSP resume os erros que levaram a essa novela:
1. Não ter informado na delegacia que a pessoa acusada tem o direito de permanecer calada.
2. O DNA apontando que o feto não é filho da acusada.
3. A ausência de provas que esclareçam se o aborto foi espontâneo ou provocado.
No último dia 5 de outubro, o processo foi extinto, o que fez com que o acordo seja anulado e a ré deixe de ter a obrigação de cumprir o resto da pena alternativa.
RESCALDO
Optei por não citar nenhum nome dos cidadãos e agentes públicos envolvidos nesses 3 anos de novela porque não se trata de um caso único, atípico, decorrente de maldade ou vícios dos indivíduos envolvidos. É um retrato de como funciona na prática a Justiça dos que não têm dinheiro, prestígio e poder. Isso se passa diariamente diante dos nossos olhos e não enxergamos.
A quantidade de trabalho e energia empenhados em algo que já era inútil desde o primeiro dia pela falha em não informar a pessoa acusada que ela pode ficar calada é uma das explicações para o nó gigantesco que parece ser a Justiça no Brasil.
Se este caso chegar às manchetes, muito provavelmente será por meio das assessorias de imprensa de um dos órgãos públicos envolvidos, que promoverá a visão de mundo dos agentes que atuaram no caso. De um lado estarão os que consideram a criminalização do aborto prejudicial aos direitos da mulher e de outro estarão os que entendem haver leniência na punição de abortos ilegais. Nada disso teve a menor importância neste caso, mas provavelmente é a discussão sobre a qual a sociedade uma vez mais vai se debruçar.
Um delegado da Polícia Civil do Estado de São Paulo tem salário inicial de R$ 10.382,48. O salário inicial de um Defensor Público no Estado de São Paulo é R$ 20.038,40. Um promotor do Ministério Público de São Paulo tem salário inicial de R$ 24.818,71. Já um juiz, no Estado de São Paulo, tem salário inicial de R$ 28.883,97. O salário inicial de uma atendente de telemarketing em Araraquara, na mesma empresa para a qual a ré trabalhava, é de R$ 1.449,95.
No caso concreto, a ré perdeu o emprego, teve sua vida pessoal devassada, passou 3 anos vivendo em torno de um processo criminal que o TJSP determinou não ter cabimento e agora terá de reconstruir sua vida com as duas filhas pequenas, a mãe e a avó. Todos os agentes públicos que pecaram, por ação ou omissão, durante os 3 anos em que esse processo se passou continuam empregados, com estabilidade na função e aposentadoria integral. Não sofreram nem sofrerão nenhum tipo de sanção.
O feto quase completamente formado encontrado na Estação de Tratamento de Esgoto foi perdido no meio da burocracia. Não sabemos e nem saberemos o que aconteceu com ele.
Fonte: Gazeta do Povo
Créditos: Polêmica Paraíba