Na última quarta (23), arquitetos e artistas denunciaram a demolição de um painel artístico de azulejos na Reitoria da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). O edifício e o painel foram projetados em 1965 pelo arquiteto Acácio Gil Borsoi (1924-2009). Diversos professores da instituição se manifestaram contrariamente ao arbítrio, entre eles Marcelo Coutinho, que publicou um protesto em seu perfil do Facebook (leia na íntegra abaixo), responsabilizando devidamente a reitoria – e a reitora – pelo ocorrido. A reitora da UFPB, Margareth Diniz, prontamente deu uma resposta na própria postagem. Surpreendentemente, em lugar de lamentar o ocorrido e ensejar providências para recuperar o painel demolido, a reitora prometeu processar administrativamente o professor por “desacato”.
Margareth Diniz escreveu: “um absurdo mesmo. Retorno amanhã a João Pessoa e vou tomar as devidas providências, inclusive contra esse professor que fez essa postagem. Um absurdo! Desacato a servidor público que não autorizou, não mandou, não concorda e que vai adotar as providências cabíveis… É crime também”, reforçando em comentários seguintes que considerava um “desrespeito” o modo como o professor se dirige a ela – cobrando ação.
Borsoi e o Nordeste
Acácio Gil Borsói é considerado um dos grandes arquitetos da chamada “terceira geração” do modernismo no Nordeste. Nascido e formado no Rio de Janeiro, trabalhou com Afonso Eduardo Reidy na então Prefeitura do Distrito Federal em 1946. Trabalhou ainda no Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Sphan), junto a Joaquim Cardozo e Alcides da Rocha Miranda. A convite de Lucas Mayerhofer, muda-se para Recife em 1951 para lecionar na Escola de Belas Artes de Pernambuco, onde reformula o curso junto ao português Delfim Amorim e do arquiteto Heitor Maia Neto.
Entre as décadas de 1930 e 1950, era hegemônica entre os modernos a chamada “Escola Carioca” – a partir das obras de Oscar Niemeyer, Lucio Costa, Reidy, irmãos Roberto e outros que projetaram a arquitetura brasileira no mundo. Além do amplo uso de panos de vidro com elementos de proteção solar, estrutura independente expressa em pilotis, paisagismo exuberante, uso de formas livres em planta, esta arquitetura se caracterizava por incorporar de modo hábil elementos da tradição colonial luso-brasileira às edificações, como por exemplo a azulejaria estampada. Nas primeiras décadas, tal incorporação era feita em transposição direta dos azulejos antigos – como a de Niemeyer nos edifícios da Pampulha, em Belo Horizonte – mas também em releituras figurativas contemporâneas como a azulejaria de Portinari no tímpano da Igreja de São Francisco de Assis, na Pampulha, ou no pilotis do Ministério da Educação e Saúde Pública, no Rio.
A partir da década de 1950, porém, a partir do influxo do neoconcretismo, arquitetos e artistas passaram a elaborar painéis integralmente abstratos aos muros dos edifícios. O artista mais emblemático desse tipo de obra é seguramente Athos Bulcão (1918-2008), cujos painéis ubíquos na Capital Federal se tornaram parte do imaginário dos brasilienses. A partir de sua colaboração com Oscar Niemeyer e João Filgueiras Lima – o “Lelé” – os mosaicos abstratos ganharam destaque em obras importantes como o Palácio do Congresso Nacional, o Palácio do Itamaraty ou os hospitais da rede Sarah Kubitschek.
São comuns ainda painéis similares projetados pelos próprios arquitetos autores das edificações. É o caso da Faculdade de Educação da UnB, projetado por Alcides da Rocha Miranda, bem como das obras de seu antigo colaborador, Acácio Gil Borsoi, que construiu uma vasta obra no Nordeste. É nesse contexto que se inscreve o edifício da Reitoria da UFPB, projetado por Borsoi por meio de concurso público em 1968 para ser Biblioteca Central, e de uso imediatamente alterado para abrigar a reitoria. Convém lembrar, por falar na arte do Nordeste, que a cerâmica de Francisco Brennand, de Pernambuco, frequentemente era encarregada de fornecer tais azulejos para obras desses autores em todo o Brasil.
Destruição do painel
A Superintendência de Infraestrutura da UFPB, responsável pela manutenção do edifício e pela demolição, alegou que “os azulejos estavam velhos, com mais de 45, e com uma qualidade abaixo da esperada, o que vinha provocando infiltrações na parte elétrica do prédio”. Tais problemas justificariam, para os gestores, a destruição do painel “porque existem outras obras do mesmo arquiteto na UFPB”. Segundo esta lógica, a casa de Oscar Niemeyer em Canoas poderia perfeitamente ser demolida, “porque existem outras obras do mesmo arquiteto no Rio de Janeiro”.
Nem o edifício nem o painel eram tombados em qualquer instância do patrimônio, e convém notar que duas condensadoras de ar condicionado já interferiam seriamente na leitura do bloco revestido pelos azulejos. A demolição do painel é uma demonstração bastante concreta do que ocorre com nosso Patrimônio Cultural quando faltam as políticas públicas. Conforme já denunciamos n’O Partisano algumas vezes: demolir políticas públicas – especialmente aquelas voltadas à cultura e nosso patrimônio – é uma das linhas mestras de atuação do Governo Federal.
A ausência de tutela estatal não torna a obra menos valiosa: trata-se de um edifício importante para a história da própria UFPB, projetado por um dos principais arquitetos do país do período: evidentemente demandava, quando pouco, cuidado especial. Nas últimas décadas, a arquitetura moderna vem sendo reavaliada e valorada por meio de diversas ações de pesquisa reunidas sobretudo em torno ao Comitê Internacional para Documentação e Conservação de Edifícios, Sítios e Distritos do Movimento Moderno (Docomomo), num ciclo virtuoso que a uma vez tem sido importante viabilizador de pesquisas e de interpretação de nossa cultura. Afinal, o Brasil é especialmente rico em arquitetura moderna de boa qualidade. Basta mencionar que Brasília foi a primeira obra moderna do mundo tombada pela Unesco, ainda em 1987.
Evidentemente, há soluções técnicas outras para instalações elétricas que não a demolição do painel. É natural, ainda, que a comunidade acadêmica se dirija à Reitora em busca de explicações, e que a responsabilize pelo ocorrido. O que não é natural é que, assim como costuma fazer nosso mandatário máximo, uma Reitora eleita da Universidade reaja a uma crítica se eximindo de culpa a priori e ameaçando o seu corpo docente. Os mecanismos da repressão, porém, operam também assim. Em períodos em que vige o arbítrio e a opressão, cada agente público encarna um autocrata até que todos se calem – quer por censura quer por autocensura. A destruição do painel e a reação da reitora, como disse disse o professor Marcelo Coutinho, são “um emblema da miséria intelectual que atropelou o Brasil”.
Fonte: Danilo Matoso
Créditos: Polêmica Paraíba