Embora tenha mantido silêncio público quanto ao aborto legal realizado pela menina capixaba de dez anos que engravidou após estupro, até sua conclusão, a ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, agiu nos bastidores para impedir que a criança fosse submetida ao procedimento.
A operação coordenada pela ministra tinha como objetivo transferir a criança de São Mateus (ES), onde vivia, para um hospital em Jacareí (SP), onde aguardaria a evolução da gestação e teria o bebê, apesar do risco para a vida da menina.
Para tanto, Damares enviou à cidade capixaba representantes do ministério e aliados políticos que tentaram retardar a interrupção da gravidez e, em uma série de reuniões, pressionaram os responsáveis por conduzir os procedimentos, inclusive oferecendo benfeitorias ao conselho tutelar local.
A própria Damares chegou a participar de pelo menos uma dessas reuniões por meio de videochamada, como mostram fotos obtidas pela Folha.
Pessoas envolvidas no processo afirmam ainda que os representantes da ministra seriam os responsáveis por vazar o nome da criança à ativista Sara Giromini, que o divulgou em redes sociais.
A exposição da menina atenta contra o Estatuto da Criança e do Adolescente e fez da família da vítima alvo de ameaças e pressão.
O caso veio à tona em 7 de agosto, quando foi revelado que a menina engravidara após quatro anos de estupro recorrente por um tio não consanguíneo.
No hospital, constatou-se que ela se enquadrava nas duas condições previstas pelo Código Penal brasileiro para o aborto legal: gravidez após estupro e risco de morte (dado seu corpo infantil). A terceira situação em que a gravidez pode ser interrompida dentro da lei, introduzida pelo Supremo Tribunal Federal, é a anencefalia do feto.
A partir de 9 de agosto, o ministério passou a manter contato via chamada virtual com os conselheiros tutelares Susi Dante Lucindo e Romilson Candeias, a fim de obter mais informações sobre o caso e influenciá-los.
Apenas no dia seguinte a ministra anunciou em redes sociais que acompanhava o processo, sem explicitar seu objetivo. “Minha equipe está entrando em contato com as autoridades de São Mateus para ajudar a criança, sua família e para acompanhar o processo criminal até o fim”, escreveu no Twitter no dia 10.
Logo depois, ela informou que enviaria uma missão do ministério a São Mateus. Participaram Alinne Duarte de Andrade Santana, coordenadora geral de proteção à criança e ao adolescente da Secretaria Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, Wendel Benevides Matos, coordenador geral da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, e mais dois assessores.
A eles se somou o deputado estadual Lorenzo Pazolini (Republicanos), que depois anunciaria sua candidatura à Prefeitura de Vitória.
Delegado de polícia, Pazolini ganhou notoriedade quando invadiu um hospital no município de Serra (ES) para provar que leitos de UTI estavam vazios, em junho, após mensagem de incentivo do presidente Jair Bolsonaro.
Em 13 de agosto, a ministra voltou ao Twitter: “Estamos acompanhando o caso. Durante a semana, várias reuniões virtuais. Hoje, representantes do ministério, acompanhados do deputado Lorenzo Pazzolini [sic], estiveram na cidade para acompanhar de perto as investigações”.
Em nenhum momento, porém, a ministra afirmou que o intuito era evitar e muito menos impedir o aborto. Embora Damares seja uma ativista antiaborto, a questão dividiu opiniões nesse grupo, dada a idade da vítima.
O grupo manteve ao menos três reuniões no dia 13: na 18ª regional da Polícia Civil, no conselho tutelar e com a Secretaria de Assistência Social, na sede da prefeitura. Parte delas foi registrada em redes sociais por Alinne.
O juiz da Vara da Infância e da Juventude de São Mateus, Antonio Moreira Fernandes, e o promotor da Infância e da Juventude Fagner Cristian Andrade Rodrigues foram convidados para o encontro, mas declinaram, por se tratar de um caso concreto em andamento.
Nas reuniões com os conselheiros tutelares para debater o caso, Alinne, que seguia instruções de Damares, ofereceu melhorias para o órgão.
A principal delas foi o chamado “kit Renegade”, composto de um Jeep Renegade (cujo valor inicial é R$ 70 mil) e equipamentos de infraestrutura, como ar-condicionado, computadores, refrigeradores, smart TVs e outros.
Prometeu ainda a instalação de um segundo conselho tutelar para atender a região —o atual conta com cinco membros.
O ministério de Damares afirma ter entregue, de 2019 até agosto deste ano, kits similares a 672 conselhos tutelares ao redor do país.
Segundo texto no site do ministério, 16 conselhos capixabas foram contemplados com os kits nesse período. Os itens, ainda de acordo com o site, são adquiridos por meio de emendas parlamentares.
Registros das reuniões foram publicados por Alinne no Instagram, com os perfis oficiais da ministra Damares e do deputado Pazolini marcados.
Um deles, na sede da prefeitura, mostra cerca de 20 pessoas ao redor de uma mesa: além de Pazolini, Alinne e Wendel Benevides, estão a secretária municipal de Ação Social, Marinalva Broedel, os conselheiros Susi e Romilson, quatro representantes do Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas), dois membros do abrigo Casa Lar (onde a criança estava desde que a gravidez foi constatada), dois assessores de Pazolini e dois assessores do MMFDH.
Aparecem também quatro mulheres que, segundo relatos, se identificaram como médicas do Hospital São Francisco de Assis (HSFA) da cidade de Jacareí (SP), segundo diferentes relatos à Folha.
Sem que sua vinda fosse anunciada, elas foram recepcionadas por Alinne e, de acordo com um desses relatos, apresentadas como pessoas de confiança de Damares, que teriam uma solução para o caso da menina.
A proposta: o HSFA assumiria os cuidados médicos da menina, fazendo seu pré-natal até que ela estivesse pronta para o parto. As mulheres, cujos nomes não foram revelados à reportagem, disseram que o hospital era uma instituição de referência no atendimento de gravidez de risco, como era o caso.
O hospital lista entre seus parceiros a Igreja Quadrangular, denominação cristã evangélica pentecostal de origem americana e que teve como expoente no Brasil o pastor Henrique Alves Sobrinho, pai de Damares. Ela própria era pastora da igreja ao ser indicada ministra.
Como a proposta de Jacareí não foi adiante, devido à oposição de alguns participantes e à ausência da instância judicial, o grupo partiu para uma estratégia de intimidação, segundo relatos feitos à reportagem.
No dia 14 de agosto, o juiz da Vara da Infância e do Adolescente autorizou o aborto.
Mas o Hospital Universitário Cassiano Antonio Moraes (Hucam), de Vitória, se negou a realizar o procedimento, amparando-se em normativa do Ministério da Saúde que recomenda avaliar o atendimento em casos de mais de 20 semanas de gestação ou peso fetal superior a 500 gramas.
Foi decidido então que o procedimento seria realizado no Recife, no Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros (Cisam), ligado à Universidade de Pernambuco.
Fonte: Folhapress
Créditos: Folhapress