Com a sobrevivência ameaçada e diante da possibilidade de uma devassa de proporções inéditas, a “lava jato” de Curitiba resolveu apelar para um velho truque: tentar colocar o julgador em xeque, recorrendo a uma noção quixotesca de “combate à corrupção”, para que eventual resultado desfavorável no julgamento seja minimizado. Mas a estratégia já está desgastada. Onde são apontados desvios, pode muito bem haver apenas moinhos de vento.
A cartada mais recente atingiu o ministro Vital do Rêgo Filho, do Tribunal de Contas da União. Ele foi acusado pelos procuradores de favorecer empreiteiros em troca de propina na época em que era senador e presidia a CPMI da Petrobras, em 2014.
A tentativa de ressuscitar a investigação de suposto ilícito cometido em 2014 causa surpresa. Mas a estratégia por trás fica clara quando se sabe que Vital do Rêgo é relator de um processo que investiga “receitas paralelas” em acordos fechados por ministérios públicos.
O caso mais famoso é o do “fundo da lava jato”, como ficou conhecido o acordo que previa a criação de um fundo para gerenciar cerca de R$ 2,5 bilhões recuperados da estatal. O dinheiro seria gerido pelos integrantes do consórcio formado em torno da 13ª Vara Criminal Federal de Curitiba e, genericamente, sua destinação seria “iniciativas de combate à corrupção”. A homologação ficou a cargo da juíza Gabriela Hardt.
Desde que foi descoberto, porém, o acordo gerou tantos questionamentos que a própria força-tarefa deu um passo atrás e decidiu suspendê-lo. À frente da Procuradoria-Geral da República, Raquel Dodge pediu que o Supremo Tribunal Federal declarasse a nulidade do acordo, que ela via com “boa-fé”, mas que ofendia a “configuração constitucional do Ministério Público Federal”.
Logo depois, o fundo foi barrado por decisão do ministro Alexandre de Moraes, do STF. O entendimento dele foi cristalino: tratava-se de “medida precária implementada por órgão incompetente”, além de ser duvidosa a legalidade criar uma “fundação privada para gerir recursos derivados de pagamento de multa às autoridades brasileiras”.
A história começa antes
A abertura dos autos no Tribunal de Contas da União data de março de 2018. Na época, uma representação pediu apuração sobre possíveis irregularidades na forma como eram recolhidas as multas por descumprimento de termo de ajustamento de conduta (TAC) e de indenizações trabalhistas pelo Ministério Público do Trabalho.
Havia ali indícios de que os membros do MPT definiam diretamente onde seria aplicado o dinheiro recolhido. Como concluiu a unidade técnica do TCU, os procuradores indicavam os beneficiários, escolhidos entre órgãos públicos ou entidades de interesse social.
Pela Lei da Ação Civil Pública, a destinação dos recursos deve ir para o Fundo de Defesa dos Direitos Difusos (FDD) e o dinheiro pode ser usado para financiar projetos de órgãos públicos e entidades civis que visem à reparação dos danos causados ao meio ambiente, ao consumidor, por infração à ordem econômica, dentre outros.
Em junho de 2019, o Plenário do TCU acolheu a sugestão do ministro Bruno Dantas para ampliar o escopo da representação e incluir a atuação dos ramos do Ministério Público da União e da Defensoria Pública União. Assim, seria possível “avaliar a regularidade da forma de recolhimento e gasto dos recursos, bem como o grau de transparência dessas informações”. Segundo Dantas, era preciso saber, pelo menos, quantos acordos foram firmados, quais os valores e sua destinação.
Vital do Rêgo é o relator desse processo que, com a ampliação, passou a investigar se há “orçamento paralelo” administrado pelos procuradores. Conforme o processo começou a andar, associações de procuradores de diversos ramos pediram para ingressar nos autos como interessados; os pedidos foram negados em março deste ano. O relator garantiu apenas o fornecimento das cópia dos autos, com exceção de peças sigilosas.
Um mês depois, a unidade técnica do TCU mandou nova remessa de diligências ao Ministério Público da União, com o pedido da relação dos acordos de leniência e de delações premiadas. Sobre as leniências, foram pedidos dados da celebração dos acordos com construtoras e empreiteiras, quitação e destinatário dos valores, além de extratos atualizados das contas bancárias abertas ou mantidas com os juízos federais e a forma de destinação das multas.
Em 23 de julho, o MPF enviou manifestação sobre a diligência, em que sugere que o TCU envie os pedidos individualmente aos respectivos procuradores naturais de cada caso concreto para que eles decidam sobre a “possibilidade de autorização de compartilhamento caso a caso”.
Praticamente um mês depois disso, após mais de um ano sem que tivessem sido tomadas providências na investigação sobre Vital do Rêgo em Curitiba, a força-tarefa decidiu apresentar a denúncia. Para constrangê-lo, foi determinada busca e apreensão e bloqueio de bens contra outras cinco pessoas, dentre elas um assessor do ministro.
A cartada foi dada em um momento em que a própria sobrevivência da “lava jato”, nos moldes em que funcionou por seis anos, começa a ser posta em xeque. Nesta terça-feira (1º/9), o chefe da “força-tarefa” de Curitiba, Deltan Dallagnol, anunciou seu desligamento do grupo.
O procurador-geral da República, Augusto Aras, deveria decidir até a próxima semana se autorizava a continuidade do grupo. A subprocuradora-Geral da República Maria Caetana Cintra Santos, no entanto, atropelou o chefe e decidiu prorrogar a força-tarefa em caráter liminar. A decisão ainda será julgada pelo Conselho Superior do Ministério Público (CSMPF).
Ilações desmontadas
Sobre a denúncia contra Vital do Rêgo, a defesa do ministro afirma que não foram apresentadas provas sobre o suposto recebimento de valores, sendo um fato que só existe nos depoimentos prestados pelos delatores.
Como a denúncia foi recebida nesta segunda (1º/9), o ministro Gilmar Mendes, presidente da 2ª Turma do STF, pautou para julgamento o pedido de trancamento da ação contra o ex-senador.
Em análise profunda das acusações, Gilmar votou para trancar a ação, entendendo que a denúncia conta exclusivamente com a palavra de delatores e que o inquérito tem apenas “indícios indiretos” e “conjecturas e ilações”. Ele apontou muitas incongruências, inclusive nos próprios depoimentos dos colaboradores.
Segundo o ministro, os procuradores apontaram questões ilógicas e especulativas para corroborar a tese de “blindagem” — para que os executivos da OAS não fossem intimados para depor nas comissões parlamentares de inquérito da Petrobras.
O ministro Luiz Edson Fachin, relator do processo, já havia votado pela negativa do pedido, mas nesta terça (1º/9) pediu vista. O colegiado então concedeu cautelar para suspender a ação penal que tramita na 13ª Vara Federal de Curitiba até que haja decisão final.
Apoio interno
Um dia depois de divulgada a denúncia, o colegiado do TCU demonstrou apoio a Vital do Rêgo. O decano, ministro Walton Alencar Rodrigues, assegurou que o acusado “apenas deu prova de correção e de demonstração de que é um grande homem público”. “Nada teria que suspeitar de sua atuação sempre proba e digna no exercício da jurisdição da corte”, disse.
O ministro Raimundo Carreiro criticou o modus operandi das denúncias. “As pessoas que respondem investigações são condenadas antes mesmo dos procedimentos investigatórios. Isso se arrasta por um período indefinido!”
Fonte: Conjur
Créditos: Conjur