Levantamento efetuado pelo G1 mostra que, em mais de 95% dos casos, as turmas do Superior Tribunal de Justiça (STJ) negaram a concessão de prisão domiciliar a foragidos que eram alvos de mandado de prisão preventiva.
De acordo com o levantamento, de 66 decisões sobre o tema tomadas pelas turmas (grupo de cinco ministros) do STJ disponíveis no sistema do tribunal, somente três pedidos foram concedidos. Desses, somente em um o réu continuava foragido.
Nesta quinta-feira (9), em decisão tomada em regime de plantão devido ao recesso do Judiciário, o presidente do STJ, ministro João Otávio Noronha, converteu em domiciliar a prisão preventiva decretada para Márcia Aguiar, que estava foragida.
Ela é mulher de Fabrício Queiroz, ex-assessor do senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ), que estava preso em uma cadeia no Rio e obteve o benefício da domiciliar na mesma decisão de Noronha. Queiroz é investigado por suspeita de participação em esquema de “rachadinha” dos salários de servidores na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj). Na noite desta sexta, Queiroz deixou Complexo Penitenciário de Gericinó, na Zona Oeste do Rio, e seguiu para prisão domiciliar. Mas Márcia Aguiar, apesar do benefício, seguia foragida.
Na decisão, o ministro entendeu como “recomendável”, durante o cumprimento da prisão domiciliar, a presença da mulher ao lado de Queiroz, que tem problemas de saúde.
Nas investigações, Márcia Aguiar aparece com um papel fundamental não só para manter Queiroz escondido, mas também para estabelecer contato com a família do capitão Adriano Nóbrega, apontado como miliciano e morto numa ação da polícia na Bahia no início do ano.
O STJ possui histórico de não converter em domiciliares as prisões preventivas de quem não se apresenta à Justiça. A maioria dos recursos e habeas corpus analisados pelos colegiados do tribunal foi negada ou sequer analisada.
Nos acórdãos de decisões colegiadas do STJ, a condição de foragido é sempre citada como característica prejudicial ao autor do pedido.
O principal argumento é o de que “determinadas condutas, como a não localização, ausência do distrito da culpa, a fuga (mesmo após o fato) podem demonstrar o intento do agente de frustrar o direito do Estado de punir, justificando, assim, a custódia”.
O STJ segue ainda jurisprudência respaldada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no sentido da manutenção da prisão preventiva de foragido, mesmo quando o prazo do processo é excessivo. Isso porque o próprio acusado daria causa a essa demora.
As questões criminais no STJ são decididas pelas quinta e sexta turmas. Essas turmas julgam pedidos geralmente já analisados individualmente por ministros relatores para decidir se mantêm ou não a liminar (decisão temporária) concedida. O levantamento do G1 sobre concessão de prisão domiciliar a foragidos não inclui as decisões individuais dos ministros — há mais de 1,5 mil sobre esse tema no sistema do STJ.
Segundo adiantou o blog de Andreia Sadi, ministros do STJ pretendem rever nas turmas as decisões individuais do presidente João Otávio Noronha tomadas durante o recesso de julho, quando o presidente fica encarregado das decisões urgentes.
Nos casos em que as prisões domiciliares foram concedidas, os membros das turmas entenderam se tratar de situações excepcionais — doença grave e excesso de prazo processual.
Nem na pandemia
Nem a pandemia de coronavírus foi determinante para mudar o entendimento. As turmas negaram domiciliar a acusados foragidos que alegaram estar acometidos de doenças.
A Sexta Turma negou, por exemplo, prisão domiciliar a um preso com hepatite e diabetes que argumentou estar em risco de contaminação de covid-19, doença provocada pelo coronavírus.
“Não se desconhece que a Resolução n. 62, de 18 de março de 2020, do CNJ, recomenda aos tribunais e magistrados a adoção de medidas preventivas à propagação da infecção pelo novo coronavírus/ Covid-19 no âmbito dos sistemas de Justiça penal e socioeducativo. Contudo, isso não implica automática substituição da prisão preventiva pela domiciliar”, entendeu o ministro Reynaldo Soares da Fonseca.
Em um dos processos, o pai de uma bebê de dez meses teve a prisão domiciliar negada para cuidar da mulher esquizofrênica.
“Em razão de encontrar-se em local incerto e não sabido, o apenado não pretende contribuir com o curso da execução penal e que não é imprescindível aos cuidados que ambas demandam”, concluiu a Quinta Turma.
Liminares concedidas
Em 2019, ao julgar um crime de roubo, sob relatoria do Sebastião Reis Junior, a Sexta Turma determinou o cumprimento de cautelares por constrangimento ilegal e por demora no processo.
O réu e dois adolescentes foram acusados de assalto a uma casa, com uso de arma de fogo, ocorrido em abril de 2016. A prisão só foi decretada em fevereiro de 2018.
“Creio que a demora no pedido de prisão e na prestação jurisdicional acabaram por gerar constrangimento ilegal”, afirmou o relator.
Em outros dois pedidos, a conversão da preventiva se deu por razões humanitárias, já que os presos alegaram estar acometidos de doença grave, com tratamento incompatível com a prisão.
Em um desses pedidos, caso de um acusado de homicídio ocorrido em 1995 que ficou foragido até 2014, o relator, ministro Reynaldo Soares da Fonseca, votou pela concessão da prisão domiciliar por se tratar de pessoa com 66 anos. O caso foi julgado em 2016.
“Na espécie, está devidamente comprovado que o paciente apresenta uma saúde precária, necessita de atendimento médico especializado e contínuo”, argumentou.
No outro caso, de 2008, a ministra Jane Silva apresentou voto favorável à concessão de prisão em casa para um dos sócios da Avestruz Master, empresa que vendia filhotes das aves e foi acusada de fraudes por garantir lucros certos aos clientes.
Jerson Maciel da Silva morreu naquele ano. Segundo o habeas corpus, ele chegou a perder 38 quilos em quatro meses de prisão em razão de um câncer no fígado.
“Ainda que não satisfeitos os requisitos específicos do artigo 117 da Lei de Execução Penal, a prisão domiciliar também pode ser concedida a preso provisório cujo estado de saúde esteja débil a ponto de não resistir ao cárcere, em respeito à dignidade da pessoa humana”, fundamentou a ministra.
Casos ‘raros’
De acordo com Acácio Miranda da Silva Filho, especialista em direito penal e constitucional, são raros os casos de concessão de prisão domiciliar a foragidos.
“Como regra, principalmente para aqueles que atuam na advocacia criminal no dia a dia, é raro nós vermos a concessão da liberdade a pessoas que estejam foragidas. E mais raro ainda a concessão da prisão domiciliar para pessoas que estejam foragidas, uma vez que um dos requisitos para decretação da prisão preventiva é o risco da fuga.
Ou seja, se a pessoa está foragida, consequentemente os requisitos para a preventiva estão preenchidos”, afirma o criminalista.
Segundo ele, a prisão domiciliar é uma medida excepcional, concedida se preenchidos os requisitos da prisão preventiva, mas numa situação em que a pessoa, por problemas de ordem pessoal, não pode ficar presa.
Por isso, para ele, foi feita uma “construção jurídica” a fim de se conceder o benefício à mulher de Queiroz em uma circunstância “rara”.
“Em relação à domiciliar, o Código de Processo Penal estabelece os requisitos, e a mulher do Queiroz, por si só, não preenche esses requisitos. Ele [Queiroz] preenche por conta da doença. Não à toa, o ministro Noronha fez uma construção, que soou até um pouco preconceituosa, que foi a concessão da domiciliar a ela para que ela cuide do marido nesse período”, avaliou.
Fonte: G1
Créditos: G1