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Pacientes recuperados do novo coronavírus podem desenvolver quadro de síndrome pós-Covid

Brasileiros começam a descobrir que o coronavírus é capaz de transformar tarefas corriqueiras, como subir uma escada, em obstáculos intransponíveis e caminhadas em maratonas.

Brasileiros começam a descobrir que o coronavírus é capaz de transformar tarefas corriqueiras, como subir uma escada, em obstáculos intransponíveis e caminhadas em maratonas.

São “recuperados” da pandemia, mas manifestam uma condição que alguns médicos chamam de síndrome pós-Covid-19. Uma epidemia silenciosa de consequências, paralela à do próprio vírus e já relatada em outros países.

Ela pode acometer não só aqueles que contraíram Covid-19 grave, mas gente que teve quadros leves e moderados. Agora, parte dessas pessoas sente sintomas como fadiga física e mental profunda, dores, dificuldades para respirar, fraqueza muscular, dormência, dificuldade de concentração, alterações na pele, inchaços e dores.

São sintomas inexplicáveis e, por vezes, incapacitantes. E constituem distúrbios que exames podem não mostrar, mas que não são “coisa da cabeça de hipocondríacos”, explica o neurologista Gabriel de Freitas, pesquisador do Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino (IDOR) e da Universidade Federal Fluminense (UFF).

Integrante de um grupo de pesquisa do liderado pelo IDOR para investigar sequelas neurológicas da Covid-19 grave, ele tem visto chegar também pacientes com um quadro semelhante ao da chamada síndrome da fadiga crônica.

Esta é uma condição difusa e ainda mal compreendida, que se sabe ser associada a distúrbios no sistema nervoso central. Ela pode acometer, por exemplo, pessoas que sofreram infecções virais, como Epstein-Barr, e também da Sars, em 2003.

— Tenho visto pacientes pós-Covid com fadiga crônica e dores neuropáticas. Não sabemos por que acontece, quais pacientes são mais vulneráveis e qual o percentual de pessoas que tiveram Covid-19 é suscetível a ter esse tipo de acometimento. Mas ele existe e pode se tornar um problema para muita gente — explica Freitas.

Chamou a atenção dele a procura por atendimento de mulheres jovens, de até 50 anos, que tiveram casos moderados e leves de Covid-19 e agora sofrem com os sintomas de fadiga crônica. Muitas se desesperam porque os sintomas não são mensuráveis por exames de sangue e imagem.

— Não são pacientes com histórico de depressão, tampouco hipocondríacas. É um problema real com alto impacto na qualidade de vida — frisa ele, cujo grupo de investigação de sequelas neurológicas da Covid-19 no IDOR planeja incluir a fadiga após três meses de doença.

‘Dores incomodam até para dormir’

Depressão é algo que nunca houve na vida da arquiteta Marcia Amorim, de 45 anos. Ela costumava curar as dores do dia a dia em caminhadas e travessias.

Em janeiro, se preparava para subir o Escalavrado, uma montanha da Serra dos Órgãos, junto à entrada de Teresópolis (RJ). Mas veio o coronavírus e Marcia agora se desafia a subir a escada do prédio onde mora, pois mal consegue se arrastar da porta do apartamento no Jardim Botânico até o elevador.

Após contrair uma forma “leve” de Covid-19 em maio, pouco mais que uma “gripezinha”, ela submergiu numa fadiga que parece sem fim. Passa os dias de distanciamento social afundada no sofá, se sentindo extremamente cansada, com dores e, por vezes, falta de ar.

Márcia já fez dois testes sorológicos, um PCR, não tem rastro do Sars-CoV-2. Tampouco seus exames de sangue e imagem mostram alterações. Mas isso, literalmente, não a faz se sentir melhor.

A pediatra Rosana Andrade Flintz, que trabalha na UTI infantil do Hospital Universitário Pedro Ernesto (HUPE/UERJ), sobreviveu à Covid-19 grave. Ela tem 47 anos e não tinha qualquer comorbidade, mas, ainda assim, passou 12 dias internada em UTI e precisou ser intubada.

Teve alta há um mês e voltou a trabalhar. Mas sua vida nem de longe regressou ao normal. Sente um cansaço muito, muito grande.

— Fazer uma caminhada cansa demais. Sinto dores pelo corpo, que incomodam até para dormir. Amassar uma banana com canela se tornou uma dificuldade. Isso dá ideia do que sinto. Amassar banana é desafio. Ouço outras pessoas que tiveram Covid-19 relatarem problemas parecidos — diz Rosana.

‘As pessoas não vão sair ilesas’

Um dos maiores especialistas do país em coronavírus, Eurico Arruda, professor titular de virologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) em Ribeirão Preto, se preocupa com a continuação do avanço da pandemia pelo Brasil e diz que casos de sequelas eram esperados.

— As pessoas não vão sair ilesas. Esse vírus mata os linfócitos T CD4 — frisa Arruda.

Ele se refere às células que funcionam como maestros do sistema imunológico e também são atacadas pelo HIV. Ao passo que o causador da Aids provoca uma doença crônica, o Sars-CoV-2 leva a uma infecção aguda. Embora temporária, ela pode ser grave. São os linfócitos CD4 que organizam toda a resposta do organismo ao ataque do coronavírus.

— Se você quer acabar com a orquestra, dá um tiro no maestro. É isso que o Sars-CoV-2 faz. A pessoa se recupera, não é como a Aids, mas levará um tempo.

Ele acredita que a chamada síndrome da fadiga crônica, que pode acometer pessoas que tiveram infecções virais, será transitória. Porém, representa um transtorno, capaz de afetar as coisas mais básicas da vida de uma pessoa, de hábitos cotidianos, relações pessoais e o trabalho.

— A Covid-19 tem um impacto perverso nas relações de trabalho. Muitas pessoas são negativas em testes porque eles ainda falham, tiveram o quadro clínico da doença, se recuperaram, mas agora sofrem suas sequelas e se desesperam para provar que estão sofrendo o que os exames não mostram. Estamos começando a ver também outros tipos de sequelas neurológicas, cardiológicas, renais. Só vamos colocar o dedo nessas feridas depois, estamos no início — alerta ele.

O hematologista e oncologista Daniel Tabak, que tem se dedicado ao estudo da Covid-19, diz que distúrbios imunológicos são o preço pago pelas pessoas que tiveram quadros leves ou moderados na batalha vencida pelo seu sistema de defesa contra o coronavírus.

Segundo ele, uma possibilidade é que essas sequelas sejam uma espécie de reação autoimune decorrente da briga do corpo com o coronavírus.

Atalho para o cérebro

Arruda começa a investigar a ação do coronavírus na mucosa do nariz (epitélio olfativo), cujo sintoma mais evidente é a perda do olfato. Mais do que isso, o epitélio do nariz é um atalho para o cérebro, o vírus precisa percorrer apenas meio centímetro para alcançá-lo.

— Pretendemos entender melhor distúrbios neurológicos durante e depois da Covid-19 — explica ele.

A neurocientista Fernanda De Felice frisa que as sequelas neurológicas podem ser amplas e que há relatos de casos de falhas de memória, delírios e dificuldades cognitivas.

— A Covid-19 é uma doença muito heterogênea e só agora começamos a buscar compreender como ela pode afetar o cérebro — diz a cientista da UFRJ e da Universidade Queen’s (Canadá) e cujo grupo de pesquisa junto com o IDOR foi o primeiro a alertar, em abril, sobre o risco de sequelas neurológicas da Covid-19 na revista Trends in Neurosciences.

Para alento dos que apresentam sinais de consequências da Covid-19, Gabriel de Freitas diz que eles desaparecem em médio prazo e que existem tratamentos que podem ajudar a aliviá-los, como certos antivirais, antidepressivos e estimulantes. Exames de ressonância magnética funcional poderiam detectar algumas das alterações na forma como o cérebro controla o organismo associadas aos sintomas da fadiga.

— A questão é que não sabemos ainda a escala do problema com o qual estamos lidando. Esse é mais um dos desafios dessa pandemia — salienta ele.

 

 

Fonte: O Globo
Créditos: O Globo