O Tribunal de Contas da União, o TCU, vem postergando há um mês o julgamento de quatro oficiais do topo da carreira do Exército acusados de atirar no lixo R$ 273 milhões ao cometer “erros grosseiros” num negócio bilionário. O dinheiro, claro, era público. Uma auditoria do próprio TCU identificou, em 2017, o rombo num contrato fechado pelos militares um ano antes com a montadora Iveco, subsidiária da italiana Fiat, para a entrega de veículos blindados.
Para os auditores, houve graves irregularidades na condução do Programa Guarani, um projeto do Exército para a renovação da frota de viaturas. Todos os militares que respondem ao processo já estão na reserva: são os generais Fernando Sérgio Galvão, Sinclair James Mayer e Guilherme Theophilo, além do tenente-coronel Ângelo José Penna
O valor do prejuízo é suficiente para bancar, por exemplo, uma parcela do auxílio emergencial de R$ 600 para mais de 445 mil pessoas. É mais gente do que a população de Santos, no litoral paulista. É também equivalente ao que a operação Lava Jato considera a maior quantia já recuperada de uma só vez de uma pessoa física – o filho de Dario Messer, o “doleiro dos doleiros”.
O TCU já marcou três vezes, desde o final de maio, a sessão secreta em que os quatro fardados irão a julgamento, mas o caso não entrou em pauta. Já é claro, porém, que houve no mínimo uma trapalhada imensa.
TUDO COMEÇA com um contrato firmado em 2009 e sem licitação para que a Iveco entregasse ao Exército 2.044 veículos blindados ao custo de R$ 5,4 bilhões.
Só depois de assinarem o documento é que os militares perceberam que haviam superestimado o número de viaturas encomendadas. Seria um vexame público – não havia sequer capacidade para guardá-los. Tentando esconder o erro, a força tentou negociar com a Iveco uma redução no pedido.
A montadora aceitou entregar menos veículos, mas não receber menos dinheiro. Alegou que erguera uma fábrica especialmente para dar conta da encomenda verde-oliva e que quase a metade dela ficaria ociosa por um erro que, afinal, fora cometido pelos militares. A fatura foi colocada sobre a mesa do generalato, que, sem argumentos para discordar, concordou em pagá-la em 2016.
O contrato de 2009 foi encerrado e substituído por um novo. Nele, a encomenda encolheu 23%, para 1.580 veículos, ao custo de R$ 5,9 bilhões. Ou seja, mais dinheiro e menos veículos que no acordo original. Foi esse o trato que acarretou, segundo o TCU, o prejuízo de R$ 273 milhões.
AtençãoSem a sua ajuda o Intercept não existeComo o erro foi do Exército, o tribunal já reconheceu que o dano aos cofres públicos é irrecuperável, porque a Iveco não pode ser cobrada. Restou ao TCU decidir qual será a punição dos quatro envolvidos. A área técnica, integrada por servidores de carreira concursados, propôs que todos sejam multados e que o general Fernando Sérgio Galvão, apontado pela auditoria como o principal responsável pelo rombo, seja também proibido de ocupar qualquer cargo público.
Mas os ministros emitem sinais de que vão botar panos quentes na história. Em seu voto, apresentado em fevereiro, o ministro Marcos Bemquerer, relator do caso, já eximiu de culpa um dos envolvidos: o general Guilherme Theophilo, que foi secretário nacional de Segurança Pública de Jair Bolsonaro durante a gestão de Sergio Moro e acabou demitido após o ex-ministro deixar o cargo, acusando o presidente de tentar interferir na Polícia Federal.
Bemquerer está há 19 anos no TCU. O ministro até quer cobrar multas dos demais responsáveis – de R$ 30 mil, R$ 7 mil e R$ 5 mil, valores pífios diante do tamanho do prejuízo. Mas mesmo isso pareceu rigoroso demais aos olhos de outros dois ministros, Raimundo Carreiro e Walton Alencar. Tivemos acesso à prévia dos votos de ambos, ainda não apresentados em plenário. Eles livram os militares de qualquer punição.
O plenário do TCU é formado por nove ministros. Seis deles são indicados pelo Congresso Nacional; um, pelo presidente da República; e dois, escolhidos entre auditores e membros do Ministério Público que atuam junto à corte. Todos serão chamados a votar sobre o caso.
Perguntamos ao tribunal se a instituição considera adequado que os responsáveis por tamanho prejuízo recebam uma punição tão branda e se não há, realmente, nenhuma forma de recuperar o dinheiro. A assessoria do TCU informou, apenas, que não se manifesta sobre processos que ainda não foram a julgamento.
O blindado na frente dos bois
O sonho dos generais que tomaram o poder com o golpe de 1964 era criar uma linha de blindados de fabricação nacional. Para isso, procuraram a extinta Engesa, uma referência da indústria bélica, que desenvolveu nos anos 1970 os blindados-padrão da frota brasileira: o Cascavel e o Urutu. Os dois têm porte semelhante, mas o Urutu é anfíbio – trafega na terra e na água.
A manutenção desses blindados começou a ficar onerosa na década de 1990, quando a Engesa faliu. Para o Exército, foi o estopim para que se elaborassem planos de renovação da frota, que começaram a sair do papel em 2006. Eram os tempos do governo Lula, que abriu os cofres numa tentativa de debelar a desconfiança com que seu partido era visto na caserna – hoje, como se sabe, em vão. Em novembro daquele ano, os generais abriram um processo seletivo para empresas interessadas em elaborar um projeto de um novo blindado.
A Fiat, que apresentou o orçamento mais baixo, foi escolhida e fechou contrato no ano seguinte com a Fundação Ricardo Franco, uma entidade privada, sem fins lucrativos, de apoio ao Instituto Militar de Engenharia, o IME. Ao preço de R$ 32 milhões, a montadora deveria construir um protótipo do veículo, a ser entregue em março de 2010. Se o modelo fosse aprovado, a montadora produziria 16 unidades de um “lote-piloto” até novembro de 2011. E, caso a frota agradasse, o Exército teria, enfim, seus blindados.
Ministros do TCU sinalizam que vão botar panos quentes e absolver militares responsáveis pelo prejuízo.
Com a ansiedade de uma criança numa loja de brinquedos, porém, o Exército queimou todas essas etapas. Em dezembro de 2009, quando sequer o protótipo havia sido entregue, os militares acertaram com a Iveco a compra de 2.044 blindados por R$ 5,4 bilhões. Em português claro, os generais, tidos por muitos como os guardiões da eficiência e da lisura no trato com o dinheiro público, assinaram um contrato bilionário e sem licitação para comprar milhares de exemplares de um veículo militar que sequer havia sido testado.
Quem fechou a compra foi o general Fernando Sérgio Galvão, então chefe do Estado-Maior do Exército. Ao ser ouvido pelo TCU no processo, quase uma década depois, o militar lançou mão do bode expiatório preferido por 11 entre dez colegas dele: a esquerda. Alegou que a afobação com que o negócio foi tocado era culpa do “viés político” governo Lula, que pressionava com o objetivo de fomentar a indústria nacional. Os técnicos do tribunal rejeitaram a tentativa dele de tirar o corpo fora.
Selado o acordo, a Iveco começou a construir uma nova planta industrial em Sete Lagoas, Minas Gerais. Segundo o contrato, a empresa produziria os 2.044 blindados ao longo de 18 anos, média de 114 veículos por ano. Foi para uma demanda desse porte que a fábrica foi construída.
Foi só a essa altura, porém, que o Exército percebeu que havia encomendado muito mais viaturas do que o necessário. Tentando resolver a bobagem, em 2013 o comando da força chegou a rascunhar um aditivo contratual que reduzia o pedido para 1.200 blindados, ao ritmo de 60 entregas por ano. Pela proposta, cada veículo produzido custaria R$ 173 mil a mais. Era a solução para compensar o custo ocioso de parte da fábrica, feita para atender uma demanda quase duas vezes maior.
Esse aditivo, entretanto, nunca foi assinado. Foi só em 2016 que as partes entraram num acordo para a produção de 1.580 viaturas, com 79 entregas por ano. Mas aí o Exército cometeu outro erro grosseiro: ao invés de recalcular o adicional de custo ocioso, que cairia a R$ 77 mil por blindado, manteve o antigo valor extra de R$ 173 mil por veículo – herdado da negociação anterior, que previa uma compra menor e que nunca saiu do papel.
Com isso, um custo indevido de R$ 173 mil foi embutido em cada um dos 1.580 blindados previstos na compra. Foi essa multiplicação perversa que gerou o prejuízo de R$ 273 milhões denunciado pela auditoria do TCU.
A pizza no forno
Os analistas do TCU haviam recomendado que o general Theophilo fosse multado pela “supervisão deficiente” do contrato de 2016, ocasião em que chefiava o Comando Logístico do Exército (foi dali que saiu o atual ministro da Saúde, Eduardo Pazuello). Mas Bemquerer discordou e, em voto anunciado no último dia 12 de fevereiro, acatou as explicações do general.
Bemquerer também apiedou-se do general Galvão, que assinou o contrato precipitado de 2009. Além da multa, os técnicos do tribunal pediram que ele ficasse impedido de assumir cargos públicos, como prevê a lei para casos graves. O ministro afirmou, porém, que essa punição só deve ser aplicada se “o agente atuar com dolo ou má-fé”, o que ele avaliou não ter sido comprovado.
General responsável pela comprar tentou culpar o bode expiatório habitual do Exército: a esquerda.
Assim, votou para que Galvão seja apenas multado em R$ 30 mil. É menos do que os R$ 33,7 mil mensais, líquidos, que o general recebe como ministro aposentado do Superior Tribunal Militar, o STM.
Multas ainda menores foram propostas por Bemquerer aos outros dois militares envolvidos. Para o general Mayer, responsável por três contratos menores – mas também irregulares – com a Iveco, entre 2012 e 2014, o relator fixou a penalidade em R$ 7 mil. Já para o tenente-coronel Machado, que assinou o contrato de 2016, Bemquerer atribuiu multa de R$ 5 mil. Ao passarem para a reserva, os dois recebiam salários de R$ 23,4 mil e R$ 16,4 mil, respectivamente.
Já o general Theophilo deixou as fileiras da ativa recebendo R$ 26 mil por mês.
Ao Exército, perguntei se reconhece o rombo apontado pelo TCU e que providências pretende tomar a respeito. Mas a força limitou-se a informar que “não comenta processos ainda em tramitação”.
Também pedi ao Exército e à Advocacia-geral da União, que é a representante legal dos quatro envolvidos, que me indicassem uma forma de contato com os militares, porque não os localizei. Essa demanda igualmente ficou sem resposta.
Fonte: theintercept
Créditos: theintercept