Dois meses após deixar o Ministério da Justiça alegando tentativas do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) em interferir politicamente na Polícia Federal, o ex-juiz federal Sérgio Moro acredita que a atual gestão abandonou a agenda do combate à corrupção e pode pagar um preço alto caso não a retome.
Em videoconferência com investidores organizada pela equipe de análise política da XP Investimentos, o ex-ministro disse ter saído do governo com a impressão de que sua presença funcionava como uma espécie de defesa para a atual administração contra quaisquer críticas no campo do enfrentamento à corrupção.
“Passei a ter uma impressão de que a minha presença no governo era um álibi”, disse. “É preciso construir uma agenda, não construir uma política em torno da utilização de uma personalidade”.
Moro preferiu não comentar a prisão de Fabrício Queiroz no caso envolvendo um suposto esquema de “rachadinhas” no gabinete do então deputado estadual Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ) na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj). Mas salientou a importância de que fatos sejam esclarecidos.
“Eu deixei o governo, externei minhas razões na época. Não concordo com interferências, isso corrói com meus princípios. Essas coisas estão relacionadas, então não me sinto confortável em comentar o caso concreto. É importante que os fatos sejam esclarecidos”, afirmou.
“Não passamos por uma Lava-Jato, com todas as dores que isso gerou de impactos políticos e econômicos – embora positivos a meu ver –, para varrer tudo debaixo do tapete. Isso tem que ser esclarecido”, complementou.
O ex-juiz federal da Operação Lava-Jato também reconheceu que os movimentos de aproximação do Palácio do Planalto com lideranças do chamado “centrão” geraram incômodo e somaram-se aos motivos de sua saída do governo em menos de um ano e meio no cargo.
Eis os principais assuntos tratados na videoconferência:
Bolsonaro e o combate à corrupção
Na avaliação do ex-ministro, o governo Jair Bolsonaro abandonou a agenda de combate à corrupção. “Passei a ter uma impressão de que a minha presença no governo era um álibi”, disse. “É preciso construir uma agenda, não construir uma política em torno da utilização de uma personalidade”.
“Poder-se-ia ter aprovado no Congresso o projeto que trata da prisão em segunda instância. O Planalto poderia ter adotado essa bandeira com força. Uma coisa é o Ministério da Justiça [defender a matéria], outra é o Planalto. Minha percepção é que a agenda foi deixada de lado”, observou.
Para Moro, o governo precisa imediatamente retomar a agenda de combate à corrupção, prioritária nas eleições de 2018 e uma das principais bandeiras de campanha de Bolsonaro. “Se o governo não retomar com ênfase, vai pagar o preço”, afirmou.
“Estamos falando de um governo de um ano e meio, ele tem condições de retomar. Mas tem que arregaçar as mangas”. O ex-juiz também citou pesquisas de opinião que mostram que parcela importante da sociedade está mais cética com relação à atuação do governo nesta área.
De acordo com o último levantamento XP/Ipespe, 47% dos brasileiros acreditam que o combate à corrupção terá piorado nos próximos 6 meses, contra 21% que esperam melhora. Em novembro de 2018, um mês após a vitória de Bolsonaro nas urnas, 56% estavam otimistas e apenas 17% apostavam em uma piora neste quesito.
“Não se constrói o futuro escondendo os erros do passado”, disse o ex-ministro.
Aliança com o “centrão”
Moro também manifestou incômodo com o movimento de aproximação feito pelo governo com lideranças do chamado “centrão”. Segundo ele, esta foi uma das situações que motivaram sua saída do Ministério da Justiça, mas a “gota d’água” teria sido a alegada interferência sobre a Polícia Federal.
O gesto em direção a determinadas figuras políticas, diz o ex-ministro, deveria ser evitado e poderá trazer consequências negativas no curto e longo prazos.
“Esse é um pecado original da Nova República. Tivemos a redemocratização, o movimento das Diretas Já (…) Mas o que se observou foi uma progressiva deterioração, com todo respeito aos políticos, da integridade, da ética da coisa pública. Interesses particulares prevalecendo sobre os públicos”, pontuou.
“Esse foi o calcanhar de aquiles de vários governos desde então. Com sua agudização nos governos dos presidentes do Partido dos Trabalhadores. Ultrapassamos alguns limites que não poderiam ter sido ultrapassado, se é que não tinham sido ultrapassado antes”, avaliou.
Para ele, é possível buscar a governabilidade sem se relacionar com “parlamentares com histórico não muito positivo”. Como alternativa, deve-se fazer uma aproximação com deputados e senadores “que se movem por princípios, por interesses legítimos”.
“Quando você favorece parlamentar com histórico não muito positivo, acaba favorecendo que ele seja eleito e traga outras pessoas para o parlamento. Com o tempo, você tem uma progressão em que a negociação vai ficando cada vez mais cara”, observou.
“Essas alianças, com figuras políticas questionáveis pelo seu histórico, deve ser evitado ao máximo pelo Poder Executivo. A alternativa é que você negocie, no bom sentido, com aqueles que têm histórico positivo em sua vida pública. E tem muitos”.
Sobre críticas de que a Operação Lava-Jato teria criminalizado a política no país, ele rebate: “se alguém criminalizou [a política] foi quem cometeu crime”.
Caso Queiroz
Moro preferiu não comentar sobre os detalhes do caso envolvendo um suposto esquema de “rachadinhas” no gabinete do então deputado estadual Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ) na Alerj. Mas salientou a importância de que fatos sejam esclarecidos.
“Eu deixei o governo, externei minhas razões na época. Não concordo com interferências, isso corrói com meus princípios. Essas coisas estão relacionadas, então não me sinto confortável em comentar o caso concreto. É importante que os fatos sejam esclarecidos”, afirmou.
“Não passamos por uma Lava-Jato, com todas as dores que isso gerou de impactos políticos e econômicos – embora positivos a meu ver [dados os efeitos da corrupção sobre ambas as áreas] –, para varrer tudo debaixo do tapete. Isso tem que ser esclarecido”, complementou.
Tensão entre governo e STF
Para Moro, algumas decisões tomadas pelo Supremo Tribunal Federal estão sendo injustamente criticadas. E citou as reclamações do governo de que o Tribunal teria retirado atribuições do governo federal no enfrentamento à pandemia do novo coronavírus ao estabelecer que estados e municípios poderiam decidir sobre medidas de isolamento social.
O ex-juiz acredita que o governo “abdicou da responsabilidade de coordenar uma ação” com estados e municípios e deixou de tomar iniciativas possíveis mesmo depois da restrição estabelecida pelo colegiado. “Precisava de uma coordenação federal e o governo federal não fez”, disse.
“É fácil criticar o Supremo nesse caso, mas existe uma racionalidade. A decisão está correta no contexto em que foi tomada”, complementou.
Intervenção militar
O ex-ministro diz que não acredita “nem por um segundo” em uma “saída antidemocrática” no país, “o que não significa que não devemos permanecer vigilantes”. ” Os governados precisam sempre ficar atentos aos movimentos dos governantes”, defendeu.
“Há uma visão autoritária de determinadas pessoas. As instituições são uma barreira. Mas ficaríamos melhores sem esses arroubos”, avaliou. Para ele, “é muito ruim estarmos discutindo temas de 1964 ou da Guerra Fria” e trazendo de volta rótulos de “comunista” e “fascista” entre as partes.
Moro define o atual governo – do qual participou por cerca de 16 meses – como um “populismo de direita com viés autoritário” e citou o vice-presidente, Hamilton Mourão, ao defender que “é preciso colocar a bola no chão e pensar o país”.
“Mas sinceramente acho que é muito mais fumaça do que fogo. Não creio que corramos risco disso (sobre golpe). E o governo tem condições de construir uma pauta positiva em cima das reformas”, pontuou.
“Não vejo isso acontecendo. Mesmo em um cenário de futuro agravamento das condições econômicas. Mas é importante que falemos. O melhor seria que não precisássemos falar”.
PGR
Na avaliação de Moro, foi um erro o presidente Jair Bolsonaro não ter seguido a lista tríplice indicada pela ANPR (Associação Nacional dos Procuradores da República) ao escolher Augusto Aras para o comando da Procuradoria-Geral da República.
“Tenho dificuldades em avaliar [a atuação de Aras]. Não gostaria de avaliar. Penso que, vendo retrospectivamente, foi um equívoco não seguir a lista tríplice. O grande problema quando se sai disso é que qualquer atuação pró ou contra o governo acaba sendo vista de uma maneira diferenciada”, argumentou.
Para ele, seria importante estabelecer critérios para esse tipo de escolha, o que reduziria o risco de possíveis interferência e conferiria um reforço institucional. Um dos exemplos citados seria a definição de mandatos para os nomeados para o comando de instituições como a PGR e a Polícia Federal – esta última pivô da crise que culminou em sua saída do governo.
Reformas econômicas
Moro defendeu um caminho da desburocratização e abertura da economia brasileira, citando o ministro Paulo Guedes. Ele também disse que uma reforma administrativa é “importante”, mas disse que ela não pode tratar o servidor público “como vilão da história”.
Quanto à participação do Estado nos esforços pela retomada da economia, o ex-juiz disse que “não podemos incorrer aos erros do passado” quanto a estatizações de empresas. “Não acho que o retorno ao passado de estado participante da economia por meio das [empresas] estatais seja o caminho”, opinou.
Reunião ministerial
Moro também falou sobre a reunião ministerial de 22 de abril, cuja gravação foi liberada de sigilo por decisão do ministro Celso de Mello, decano do STF, no âmbito do inquérito que apura suposta interferência do presidente Jair Bolsonaro sobre a Polícia Federal.
“O que achei mais engraçado é que muita gente fez comentários de que o vídeo favorece o presidente. Favorece onde? Não tem como favorecer ninguém”, afirmou.
Questionado se todas as reuniões entre ministros eram parecidas com aquela levada a público, o ex-chefe do Ministério da Justiça disse que a qualidade variava, mas que os encontros foram sendo mais negativos nos últimos meses.
“Infelizmente, nos últimos meses, talvez por reflexo da pressão da pandemia, a racionalidade se perdeu um pouco”, disse. Ele citou os últimos encontros no período de Luiz Henrique Mandetta no comando do Ministério da Saúde como “igualmente negativas”.
“Eu só falei daquela reunião porque me foram cobradas provas. Claro que, mesmo gravadas, há pessoas que preferem fechar os ouvidos e fechar os olhos”, disse.
Candidatura
Moro diz que, depois das experiências na magistratura e como ministro, quer ser “uma voz no debate público”. “Falar não tem problema nenhum. Isso não significa que eu vá para uma carreira política propriamente dita”, afirmou.
“Fora do governo e da magistratura, posso ter uma voz mais ativa em várias questões. Quem tem voz tem uma responsabilidade em participar desse debate público. Quando era juiz, ficava muito reticente em falar sobre qualquer tema. Como ministro, tinha um pouco mais de liberdade, mas algumas amarras em discordância de posições do presidente”, disse. “Agora estou fora e tenho mais liberdade para falar”.
Além da plataforma do combate à corrupção, que buscou estender para o campo econômico e para o debate institucional de crescente desconfiança de parte da população na democracia, Moro pregou contra a polarização política. Ele defendeu o diálogo entre as partes e a união para a superação da crise provocada pelo coronavírus.
E encerrou o encontro virtual com uma mensagem: “Fiquem tranquilos que chegaremos lá. Nunca é um beco sem saída”. Enquanto ainda participava do governo Bolsonaro, Moro era enfático em dizer que não seria candidato e declarava apoio à intenção do presidente em disputar a reeleição.
Fonte: InfoMoney
Créditos: InfoMoney